Tulpan não deixa dúvidas, trata-se de um filme nobre, dotado de discreta grandeza e de uma imensa humanidade. Sergey Dvortsevoy merece, para além dos galardões recebidos, o epíteto de “Lobo das Estepes” do panorama cinematográfico actual. Dvortsevoy associa à linha do cinema documental a visão ficcional, conseguindo uma recolha autêntica da realidade dos povos nómadas do Cazaquistão sem cair em clichés etnográficos ou em exotismos desproporcionados. Embora seja rodado na árida estepe do Cazaquistão, Tulpan é um filme onde a realidade se expande e o sonho não tem limite. Tulpan retoma a tangibilidade do sonho, a «possibilidade de uma ilha», um oásis que se reinventa nas mais fastidiosas paisagens da terra de ninguém. Tulpan «dá-nos asas» e documenta a história de Asa, um jovem marinheiro ao serviço da armada russa que regressa a casa. Mas a casa onde Asa é acolhido não é mais do que uma cabana feita de paus e panos. Esta cabana no meio do deserto, à mercê de ventos constantes e tempestades impiedosas, alberga a família da irmã de Asa. A família é composta pelo cunhado, que nunca aceita o regresso do jovem marinheiro, e três filhos, três crianças com um papel singular na história materializando a fantasia e a esperança. Tulpan começa por ser um filme árido mas aos poucos vai-se tornando num cenário acolhedor, na terra fértil da ilusão. Asa sonha. Sonha em abandonar a condição de nómada, casar, encontrar o amor e com ele conquistar um pedaço de terra. O sonho de Asa é fazer crescer um rebanho e a sua própria família. Mas para ser pastor e merecer a confiança do patrão, é necessário que Asa consiga uma esposa para dividir o trabalho árido da estepe solitária. Asa é apresentado a Tulpan, a única filha de uma família vizinha. Mas Tulpan idealiza a vida na cidade e desgosta das peculiares orelhas de Asa. Apesar das semelhanças com «outras realezas» Asa e os amigos não conseguem convencer Tulpan a casar e ali fundar o seu reino. Tulpan é um magnífico registo etnográfico, reiterando uma fórmula de sucesso no cinema dos nossos dias: a evolução do formato de cinema documental para o cinema ficção. Com laivos de comédia, filme documental e dissertação etnográfica Tulpan vale, acima de tudo, pela beleza e honestidade que o realizador imprime à paisagem e às personagens. Ao longo do filme as paisagens inóspitas e as personagens mais áridas vão-se adensando, ganham identidade e humanidade e criam laços de empatia com o espectador. Estas afinidades são conseguidas no seguimento de contrastes que enfatizam a desolação da paisagem e a sua beleza; a fragilidade do ser humano e a sua força interior. Tulpan é uma metáfora às travessias no deserto, um tributo aos que conseguem sobreviver nos vazios da existência, e mesmo aí, perseguir e alcançar um sonho.
SA, Revista Áudio e Cinema em Casa, ed. Janeiro de 2012
Europa, ano de 1965. Yves Montand desempenha a personagem de Diego Mora, militante comunista espanhol, habituado às travessias da fronteira para missões clandestinas. Ao retornar a Paris, onde vive com um nome falso, Diego procura encontrar um de seus camaradas e impedi-lo de voltar a Madrid, onde poderá ser preso pela polícia franquista. Esta breve sinopse resume a acção principal do filme de Alain Resnais mas neste A Guerra Acabou, o realizador aproveita a acção principal para edificar um filme centrado na reflexão política.
Ao contrário das longas-metragens anteriores de Resnais A Guerra Acabou é, essencialmente, uma reflexão social e política voltada para o futuro. Esta intenção ajusta-se à narrativa realista reflectindo-se na personalidade de Diego, o herói que se move em cenários distintos: o cenário da guerra real e da guerra das ideologias, das militâncias, da consciência e suas contradições. Diego vai procurar no exílio francês o mito romântico da revolução, o ideal que perpetua «outras guerras». Para esta personagem a luta prossegue silenciosa. As novas guerras travam-se no plano reflexão sobre a utilidade ou inutilidade das acções humanas no cenário das «guerrilhas políticas» de uma Europa a preto e branco.
Diego é uma tripla personagem, três vidas, três nomes, entre mulheres e dois países, é a personagem que dá corpo ao manifesto político de Resnais: a guerra jamais terminará pois a luta que importa travar passa por manter viva a causa e as razões que a deflagraram. As contradições e dúvidas da personagem são assumidas no discurso de Diego com o Grupo Leninista de Acção Revolucionária, encabeçado por um conjunto de jovens inexperientes e idealistas que alvitram um ataque terrorista ao turismo espanhol como golpe determinante para “despertar a consciência das massas”. Instigado pela inconsciência destes jovens, Diego o “mestre” revolucionário, questiona-os: "vocês não querem fazer desaparecer o sol de Espanha?”. A possibilidade de uma guerra ou a impossibilidade de uma ideologia passa a ser o tema central da personagem. Diego é uma personagem marcada por um discurso realista num tempo e espaço virados para o futuro, materializados nas técnicas flash-forward do realizador. Um regresso ao futuro com a tónica do passado ou simplesmente a humildade de aprender com os ensinamentos da História? Esta é a grande premissa de Alain Resnais ao «declarar o fim da guerra». A Guerra Acabou é o filme político de Alain Resnais sem assumir contudo, o carácter de filme militante ou panfletário. Sem pretensões que possam escapar ao seu campo acção, A Guerra Acabou é um filme documental, experimental e histórico que descreve uma realidade atemporal e universal, próxima das contradições que hoje se desenham numa Europa onde a história continuamente se repete.
SA, Revista Áudio e Cinema em Casa, ed. Janeiro 2012
FILMES 1- O Miúdo da Bicicleta, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne 2- As Quatro Voltas, Michelamngelo Frammantino 3- O Deus da Carnificina, Roman Polanski 4- Essential Killing- Jerzy Skolimowski 5- Melancholia, Lars Von Trier 6- Road to Nowhere, Monte Hellman 7- Inquietos, Gus Von Sant 8- 48, Susana Sousa Dias 9-O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, Apichatpong Weerasethakul 10- Habemus Papa, Nanni Moretti
LIVROS 1- Elias Canetti- Auto de Fé, Cavalo de Ferro 2- Vassilli Grossman -Vida e Destino, D. Quixote 3- Patty Smith- Apenas Miúdos, Quetzal 4- Michael Houllebecq- O Mapa e o Território, Alfaguara 5- Gonçalo.M.Tavares- Canções Mexicanas , Relógio d’Água 6- Philip Mayer- Ferrugem Americana, Bertrand 7- Julian Barnes, O Sentido do Fim, Quetzal 8- Valter Hugo Mãe- O Filho de Mil Homens, Alfaguara 9- O Museu da Rendição Incondicional- Dubravka Ugrešic, Cavalo de Ferro 10- A Ilha de Sukkwan, de David Vann, Ahab
00:00 Kyle Eastwood and Michael Stevens - Gran Torino 05:45 Clint Eastwood - Doe Eyes (Love Theme From The Bridges Of Madison County) 10:10 Ennio Morricone - The Good, the Bad and the Ugly 12:30 Clint Eastwood - Unknown Girl Of My Dreams 14:32 Clint Eastwood - Rowdy 17:15 Clint Eastwood & Lee Marvin - Best Things 20:50 Clint Eastwood - Gold Fever 23:40 Ennio Morricone - A Fistful Of Dollars 26:30 Clint Eastwood - For All We Know 28:35 Dinah Washington - Soft Winds (The Bridges Of Madison County) 31:30 T.G. Sheppard & Clint Eastwood - Make My Day 34:30 Lalo Schifrin - Dirty Harry Theme
«Penso que tenho sido suficientemente realista e é isso que sou nesta altura da vida. Sempre senti que as pessoas têm que evoluir. Se alguma vantagem há na idade, é o conhecimento e a experiência, até ao dia em que me surja alguma espécie de pré-senilidade, julgo que vou continuar a explorar isso. Mas se uma pessoa não está disposta a aceitar a idade que tem, não se pode fazer isto [continuar à frente das câmaras como actor sem temer a sua comparação com a imagem icónica de jovem actor]. Nesse caso uma pessoa não pode senão sentar-se e dizer, 'Bem há 40 anos atrás eu era esse tipo que corria e empunhava esta arma'. Não que não possa fazê-lo até determinado ponto, mas não está certo. O que é justo é jogar agora na minha área. Brinquei com a idade em "In the line of fire", mas agora é altura de dizer 'é isto que és e aquilo que serás'. Podia pintar o cabelo e dizer que voltei a ter 35 anos. Mas não tenho e não o vou fazer.»
Clint Eastwood, in Film comment, 2005 execerto da entrevista de Amy Taubin, in Clint Eastwood, Um Homem com Passado, Cinemateca Portuguesa, Museu do Cinema, 2008, p.83
A propósito de Grand Torino (Escrevia assim em 8 Março 2009)
Foi ao som de uma salva de palmas que terminou a projecção de Grand Torino na passada sexta-feira na Cinemateca Portuguesa. Enterrada na cadeira, fiquei presa ao tema final de Grand Torino e lembro-me de não ter vontade de sair da sala. Apetecia ficar por lá toda a noite, e rever os filmes de Eastwood com e sem o próprio. Clint Eastwood é um homem sem idade, um dos maiores realizadores vivos. É pois com assumida audácia que me arrogo afirmar: "existem dois tipos de amantes de Cinema os que se rendem a Clint Eastwood e... os outros".
Sergio Leone afirmou:"Eu gosto do Clint Eastwood porque ele tem somente duas expressões faciais. Uma com o chapéu e outra sem ele". Em Grand Torino Clint Eastwood põe o chapéu, tira o chapéu e olha-nos nos olhos! Grand Torino é pois muito mais do que apenas mais um filme de Eastwood. É a imagem projectada no espelho, é um álbum de memórias, a recolha de ícones cinematográficos criados pelo próprio Eastwood. Já aqui falei na dificuldade de escrever sobre os seus filmes, e com toda a seriedade esta dificuldade é cada vez maior. Mas é impossível resistir a esta terceira face de Eastwood, o seu olhar. O que mais me intriga e fascina nos filmes de Clint Eastwood é um denominador comum: o arrependimento por algo que se fez ou se deixou de fazer. A ideia de redenção é uma constante. Tudo se desenrola como se o realizador procurasse, através da absoluta humanidade que imprime nos seus filmes, encontrar a absolvição da culpa, do erro, da omissão, da ausência de discernimento e consciência, a ideia de transcendência e plenitude, no grande plano da moral ou do excesso dela. Neste Grand Torino Eastwood alcança, finalmente, a redenção. Apesar de não se confessar pelo (em) nome próprio, nunca entregando as mãos a quem o reporta a Deus, apesar de não acreditar na eternidade nem na feição "agridoce da morte", Clint atinge a paz redimindo-se do pecado capital. Clint deixa o chapéu, baixa a arma digital e confessa-se, por fim, de braços estirados na relva como o um novo redentor: Eis-me perante o Ti em nome da vingança que é tão enganadora como a própria morte. Clint Eastwood encontra o seu "Personal Jesus" e Grand Torino é um capítulo da Bíblia.
O cenário é a América de Obama, dos netos do Tio Sam, a América onde o crime tem nome de raça e de vergonha. São de raça e de vergonha os homens que em tempos partiram para a terra prometida. São de intolerância e de arrependimento, de multi culturalismo e identidades esquecidas, reprimidas. Clint é Walt Kowalski , um americano de descendência polaca, que herdou o perfil de Harry Callahan, o "dirty harry" de Siegel, o bom , o mau e o vilão numa só personagem. Walt Kowalsky é o cowboy de Leone, o justiceiro incorruptível, o inspector rabugento, o Frank Corvin da Ford, os homens de Iwo Jima, o estandarte da bandeira dos seus antepassados. É impossível não sentir uma enorme empatia por este Walt Kowalski, é impossível não chorar a sua morte. Mas é ainda bem mais agradável olhar Clint Eastwood através dos seus próprios olhos, sentido a sua própria música. Imperdoável esse olhar: casas comigo Clint?
Tão belo... faz justiça à estatueta dourada de 2009. Curiosamente em Japonês Okuri significa «levar» Bito significa «pessoa». Assim, Okuribito pode ser "a pessoa que leva outra a algum lugar".
Uma das formas de homenagear Raúl Ruiz é relebrar a sua obra. Recentemente o mercado nacional acolheu a colecção que vem consagrar o trabalho do realizador chileno .
O “Cofre Raúl Ruiz- A consagração” inclui cinco filmes do realizador: “Klimt Director’s cut”; “Aquele dia”; “O Tempo Reencontrado”, “Genealogias de um Crime” e “Três vidas e uma só Morte” obras que determinaram a consolidação da vasta carreira de Raúl Ruiz, que nos deu a conhecer notáveis interpretações de Catherine Deneuve, Marcello Mastroianni, John Malkovich, Michel Piccoli, Melvil Poupaud, Emmanuelle Béart, Bernard Giraudeau, entre outros.
O primeiro filme da colecção, apresentado no festival de Berlim em 2006, consiste num retrato do artista austríaco Gustav Klimt cujas pinturas sexuais vieram simbolizar o estilo de Arte Nouveau do final do século XIX e início do século XX.
O filme de Raúl Ruiz não é só um trabalho sobre a vida do pintor austríaco, é também um testemunho da realidade artística e conceptual da Europa no final do século XIX. Nestes tempos de mudança, Klimt assume-se como um artista controverso, o expoente máximo do simbolismo, do erotismo e da liberdade sexual em constante oposição com a ideia de arte predominante. Ruiz não se priva de inúmeras referências estéticas acabando por transformar o ecrã numa tela onde são retratados personagens ambíguas que surgem como uma espécie de consciência sublimada. Há momentos no filme que são quase cópias das cores e das técnicas do pintor. A escolha das personagens, do guarda-roupa e dos cenários são irrepreensíveis. Às pinturas de Ruiz acresce a magnífica fotografia de Ricardo Aronovich abundante em tons dourados e espelhos quebrados que remetem para as criações de Klimt. Da mesma forma que o trabalho de Klimt é intencionalmente simbólico, todo o filme é uma alegoria assente na dualidade entre consciência e realidade. Malkovich é a escolha perfeita. Porém apesar do imenso impacto visual e estético deste filme, Ruiz dá excessiva tónica aos diálogos de ordem filosófica que, se compararmos com a Morte em Veneza de L. Visconti por exemplo, acabam por ser repetitivos e por vezes exagerados. Contudo mais do que um exercício pictórico, Klimt é um filme que consegue trazer para o cinema a arte e a técnica de um dos maiores pintores europeus do início do século XX.
Raúl Ruiz é detentor de uma vastíssima obra cinematográfica rodada em diversos países, desde o Chile, terra natal, onde se estreou com a curta "La Maleta" (1963) e onde filmou até 1974, à França, o país de exílio, no qual assinou o primeiro filme que tornou o seu nome conhecido internacionalmente, "L''Hypothèse du Tableau Volé" (1979). Aquele Dia é o filme helvético de Raúl Ruiz, nomeado à palma de Ouro no ano de 2003. Abandonando o estilo pautado por temas cinematográficos com diferentes considerações filosóficas, neste filme Ruiz apresenta uma sátira à burguesia passando igualmente criar uma espécie de fábula moderna de contornos surrais e macabros, invertendo propositadamente a noção do bem e do mal. O realizador fornece ao público três temas para compreender o filme. O primeiro tema é a construção de um conto de fadas actual. Todo o filme gira em torno de um tema central no qual o belo, o sensual e o cruel protege uma jovem inocente. A personagem central, a desinquieta Emil, surge como uma espécie de Alice contemporânea “num país das maravilhas” ainda irreal mas mais moderno. Emil pensa que o dia seguinte, o amanhã, será o melhor dia da sua vida e para tal, saberá como ganhar sua liberdade livrando-se de um banquete de maldições, um cenário perverso montado por toda a sua família. A segunda pista oferecida pelo realizador é a construção deste filme como uma trama policial que decorre numa Suíça inexistente, invadida pelo militarismo. Neste cenário é contada a história de uma herdeira que convive pacificamente com macabros esquemas familiares e os planos governamentais. Por último, Aquele Dia é também uma fábula política com pitadas de humor burlesco, a fábula poética de Ruiz que proporciona momentos verdadeiramente hilariantes, herdeiros dos traços de Chabrol, temperado com a irreverência de Godard e o pitoresco universo de Alain Resnais. Por tantas referências ao melhor do cinema francês e semelhanças também com a estética de Manoel de Oliveira, este filme deve ser visto não só como um exercício estético do realizador mas também uma homenagem pueril ao cinema nas suas diversas formas.
O Tempo Reencontrado é o filme de Ruiz nomeado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1999, mas é também um filme em que realizador segue “em busca de um tempo perdido”, que resulta num trabalho excepcional: a aliança entre cinema e literatura, umaa justíssima homenagem a um dos maiores escritores de todos os tempos Marcel Proust.
Todas as formas de homenagear Marcel Proust (1871-1922) serão sempre insuficientes face à grandeza de sua obra. Proust é um dos grandes romancistas e figuras literárias da época moderna. A sua obra de sete volumes foi escrita entre 1913 e 1927. “O Tempo Reencontrado”é o último volume deste fluxo de narrativas interligadas.
Neste filme Ruiz reencontra Marcel Proust já no fim dos seus dias, num quarto forrado de cortiça onde passou boa parte da sua vida, vítima de asma. A voz do escritor (Patrice Chéreau) que revê fotografias do passado vai revelando as recordações e episódios mais marcantes de toda a sua vida. Do paraíso perdido da infância aos salões literários de Paris, o filme retrata a vasta comédia humana de todos os personagens que cercaram e apoiaram o escritor, passando também pelos tempos do trauma da Primeira Guerra Mundial e a formação de uma nova sociedade pós-guerra.
Raoul Ruiz recria neste filme a intenção de Proust: a tentativa de criar uma atemporalidade impossível, misturando cenários barrocos com planos surreais. Esta fórmula é extremamente bem conseguida pois ao longo do filme, o conceito de tempo vai-se perdendo e no fim, o espectador é confrontado por sublimes volumes de estilhaços intemporais. Com magníficas interpretações a cargo de Marcello Mazzarella, Catherine Deneuve, John Malcovich, Vincent Perez e Emmanuelle Béart as personagens reais, que fizeram parte das histórias de Proust, começam a misturar-se com as personagens criadas para a ficção e, gradualmente, a ficção vai-se sobrepondo à realidade. Um filme para amantes de literatura e de cinema absolutamente imperdível.
Genealogias de um Crime de Ruiz é baseado em factos reais. O realizador foi beber a sua inspiração na história da psicanalista austríaca Hermine Hellmut von Hug, assasinada pelo sobrinho, que também era seu paciente. Convencida da índole assassina do sobrinho, a psicanalista dá azo à concretização de um sonho premonitório. O menino é submetido a tratamento e introduzido na prática de jogos de análise sugeridos pela tia. Jeanne, a psicanalista (Catherine Deneuve), passa a observar minuciosamente comportamentos e reações do sobrinho. Tudo é diariamente registado, com pensamentos e reflexões a respeito do comportamento da criança. Após o crime o sobrinho de Jeanne é absolvido mas o conflito conflito profetizado pela psicanalista tem continuidade noutro plano, no relacionamento entre a advogada Solange, também interpretada por Deneuve, e Réné, seu cliente. Solange é uma advogada conscienciosa. No entanto, um dia permite-se transpor a fronteira que separa o trabalho jurídico e a sua vida privada para defender o jovem René, que matou a tia Jeanne. Solange vê em Réné o seu próprio filho morto num acidente, envolvendo-se com ele numa relacção amorosa. A abordagem de Ruiz ao universo da psicanálise procura demonstrar a transcendência, perenidade e universalidade dos mitos e sonhos. Mais uma vez como em tantos outros trabalhos do realizador, o real e o predestinado extravasam as vivência e consciências pessoais. Mas este filme de Raúl Ruiz não é apenas um laboratório experimental no campo da psicanálise, é também um exercício que invade o universo jurídico ressuscitando questões de ética e deontologia numa profissão que não se quer de sonhos nem de afectos. Ruiz ressususcita a polémica da permeabilidade do direito a outras ciências e vai mais além, dita a pena dos incautos e determina a culpa de quem se emiscui em seara alheia. O realizador consegue criar uma história onde a colaboração interdisciplinar na determinação da responsabilidade penal vai conhecendo limites humanos. Porém no mundo jurídico não há espaço para incertezas ou questionamentos perenes, muito menos há espaço para a ténue fronteira entre a profissão que se exerce e as emoções que a ela estão interligadas. Um filme muito interessante e com um final absolutamente inesperado.
Três vidas e uma só Morte foi nomeado para a Palma de Ouro no festival de Cannes e vencedor do prémio da crítica no Festival de S. Paulo em 1996. Nesta trama em três dimensões Raúl Ruiz constrói a história de um homem (Marcello Mastroianni) que se divide em três nomes e três personalidades, posicionando-os em três diferentes histórias de amor, luxúria e crime. O primeiro homem é Mateo Strano é um representante comercial que parte para uma curta viagem, mas na verdade limita-se a atravessar a rua para, durante 20 anos, habitar numa casa frente à sua. Certo dia, sem a menor explicação Mateo volta à sua própria casa, sob o olhar incrédulo da esposa Maria. O segundo homem é o célebre e abastado professor de antropologia George Vickers que se torna mendigo e se apaixona perdidamente pela prostituta Tânia. E por fim o terceiro homem, o poderoso homem de negócios Luc Allamand, e a terceira história. Luc inventa para si mesmo uma família que reside no estrangeiro. Tempos depois recebe surpreendentemente, uma carta comunicando a iminente chegada dos parentes para uma visita. Ruiz reúne três histórias surreais e aparentemente separadas. Mas na verdade, oscilando entre o paradoxal e o pesadelo, todas as histórias pertencem a um só homem, dividido entre suas múltiplas personalidades. Uma espécie de Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster rodada em Paris mas com um final bem mais evidente, se um homem tem três vidas, nada pode mudar o facto de que ele terá apenas uma morte.
Cofre Raúl Ruiz - Raridades
Trata-se de uma colectânea de três obras raras do aclamado realizador chileno, cuja alquimia cinematográfica se revela em ambientes fantásticos. Estes três filmes rodados em Portugal, todos com a assinatura do produtor Paulo Branco, demonstram o lado ilusionista do realizador, um cineasta artesão, criador de imagens em movimento.
Combate de Amor em Sonho também se poderia intitular os “Mistérios da Regaleira”. Ruiz aproveita os magníficos cenários da Quinta da Regaleira e da Praia da Adraga para construir um conjunto de histórias, aparententemente sob a forma de conto infantil. Trata-se de um filme que reúne uma série de fábulas mágicas que aos poucos se vão transformando em fábula filosófica.
Neste filme Raúl Ruiz opta por encadear nove histórias representadas por letras e alternadas numa técnica aleatória.
A primeira história é sobre a vida de um estudante de teologia da Universidade de Coimbra, que descobre, no dia em que faz vinte anos, que perdeu a fé nos sentidos ao ler a primeira meditação de Descartes. A segunda história conta as aventuras de um larápio que encontra num assalto um espelho ladrão que faz desaparecer tudo o que reflecte. A terceira história conta as emoções e angústias dos proprietários de um quadro
Com poderes para curar enfermidades. A quarta história narra a busca de vinte e dois anéis e de uma cruz de malta que ao serem combinados permitem a quem os possuir viver em vários mundos. A quinta história é sobre o dilema de dois irmãos gémeos teólogos que discutem continuamente sobre o livre arbítrio e a pré-determinação. A sexta história é sobre as aventuras de dois fantasmas de piratas que procuram um tesouro que eles próprios esconderam durante séculos. A sétima é uma história de antecipação, em que um estudante descobre que num site da internet há alguém que conta minuciosamente, um dia antes, as peripécias da sua vida quotidiana. A penúltima história é sobre o Amor. Dois amantes que nunca se encontraram na vida real, encontram-se todas as noites em sonhos. Na última história um homem muito católico descobre que é judeu no mesmo dia em que o seu pai é raptado por três almas penadas.
E assim sucede este filme, colando-se uma história com outra, e esta com outra qualquer até uma infinita conjugação, onde o autor parece querer baralhar o espectador. Aparentemente inovador o filme resume-se a um exercício estilístico que poderia ter sido fruto de uma reunião de devaneios. No fim perde o cinema e a sua lógica. Salvam-se os cenários, o guarda- roupa e a belíssima fotografia.
A Cidade dos Fantasmas é um dos filmes mais bizarros de Raúl Ruiz. Composto sob o signo do surrealismo o filme assenta numa trama familiar com recurso a personagens que são verdadeiros arquétipos dos modelos da psicanálise. Neste filme o realizador desafia os limites da mistificação, recorrendo a alegorias, sonhos proféticos, e personagens sinistras. O filme remete para o universo onírico do realizador retratando a história conflituosa de uma criança que fugiu de casa e Isadore, a mulher que poderia ser sua mãe. Isadore é representada como uma heroína surrealista invocando, ao mesmo tempo, as personagens femininas da tragédia grega. É uma mulher condenada, alucinada, dada a transes, sonambulismo e convulsões histéricas. Para além de ser um dos filmes mais bizarros e surreais do realizador chileno, A Cidade dos Fantasmas é um filme pobre não apenas em termos de conteúdo mas também no que concerne à forma. Existem cenas grotescas, bizarras e maniqueístas que dominam toda a história fazendo dela um conto escatológico. A história relata o encanto que um misterioso menino de 10 anos exerce sobre a Isidore, conduzindo-a para o suicídio. Toda a cena decorre num cenário pictórico pintado pelo mar e agrestes escarpas rochosas, ecos de uma cidade que não existe. Neste exercício surreal o realizador conta a história de um assassino que se esconde numa ilha e vê o seu futuro carrasco encarnado numa criança que é uma réplica exacta de si mesmo. No fundo Raúl Ruiz recorre novamente à fórmula de reunir, num único filme, três histórias que acabam por ser uma só. Embora ambíguo e recorrendo a técnicas rudimentares, a Cidade dos Piratas deve ser lido como filme-fantástico, reunindo transe e a paranóia, poesia mórbida e referências ao maniqueísmo artístico e cultural do início dos anos 70.
O DVD inclui extras sobre a filmografia de Raúl Ruiz, uma entrevista ao realizador e a Mevil Poupad para além de uma cena comentada por Fréderic Bonnaud. O DVD incluiu ainda o outro filme inédito de Raúl Ruiz realizado em 1984: Ponto de Fuga.
O Território é uma espécie de filme de aventura com laivos de filme de terror, mas acaba por ser manifesto de uma metafísica extraordinária. Tem como tema central o canibalismo e o desespero dos homens. A história tem como protagonistas um grupo de norte-americanos (dois casais, duas crianças) e seu guia, que partem numa excursão pela floresta. O filme, inspirado por um incidente que ocorreu nos Andes após um acidente de avião, acaba por convidar o espectador a integrar a história.
Subitamente o guia que acompanha o grupo desaparece e aos poucos os protagonistas vão-se perdendo no Território, uma espécie de "zona" tarkovskyana, um espaço ficcional inóspito e confuso. Presos neste espaço, os membros do grupo vão compreender os contornos entre o realismo e sonho. Neste Território, Ruiz consegue metaforizar o comportamento humano quando confrontado com a impotência perante as suas próprias representações. Para tal elege um território que não respeita as convenções da percepção, desafiando os limites da racionalidade. Neste filme Ruiz explora, mais uma vez, um tema dominante em todo o seu trabalho: a percepção da realidade depende das nossas ideias, do nosso próprio sistema real e ficcional e da forma como lidamos com as nossas “zonas de incerteza”, as manobras cinzentas da alma.
A força e a estranheza do filme residem nas representações invocadas pela história e pelos personagens ou seja, as representações do espectador, que é chamado a participar no desafio. No Território o espectador é ele próprio uma personagem que tenta encontrar seu caminho. O filme transporta-nos a um universo fantástico, ancestral e maravilhosamente primitivo (o medo da noite, do desconhecido, a estranheza da natureza…), incidindo sobre os nossos medos e mais recônditos segredos. E por isso, um pouco mais do que um filme, é um desafio, um convite, um risco. Mas vale a pena.
Quando se entra na livraria comum e procuramos a secção de «Poesia» normalmente percorremos um longo corredor que nos conduz a uma pequena estante onde jaz o pó dos livros e a beleza das memórias. Como a água de um rio sabemos que o percurso tem um movimento, uma intenção, um fim. Se a «Poesia» fosse um produto de hipermercado normalmente procuraríamos por ela na secção gourmet, os balcões dos raros apreciadores, das pessoas que gostam de «coisas esquisitas», dito de outra forma: a poesia como produto para os mais requintados ou excêntricos.
Engane-se o espectador que vem ao filme “Poesia” Lee Chang-dong pelo título. O que o realizador nos traz é veia realista da “poesia” encorpada numa personagem excessivamente real que vive dramas concretos. Ilude-se que procura neste filme paisagens idílicas, lugares e tempos poéticos da mística oriental. Poesia é tratada como palavra nua. Dizia Octavio Paz que “a palavra quando é criação desnuda”. Lee Chang-dong identifica a poesia como uma dinâmica, um caminho: a revelação do ser, a consciência de si. A «Poesia» deste realizador sul-coreano ensina a conjugar verbo e tempo.
O filme imprime na história de quem se rege pelo desafio da poesia, a forma se desaprender, de se desnudar. Como escreveu Pessoa esta é a história de quem se propõe a “esquecer-se do modo de lembrar que me ensinaram”. Talvez seja por isso que um dos temas centrais deste argumento é a descoberta que a protagonista faz, Mija (que queria aprender a escrever poesia) descobre que sofre da doença de Alzheimer. Neste filme a beleza não é o resultado de uma paisagem, da arquitectura das palavras, não nasce da predisposição do artista. A beleza acontece no curso de um processo: o processo da palavra que se despe, a palavra que se via esquecendo da sua função.
Lee Chang-dong vem questionar o papel da poesia nas sociedades modernas. Ao contrário da linguagem da pintura, da música, da dança, a poesia foi perdendo conceito, território e validade. A linguagem poética passou a ser um prazer dos excêntricos, um produto raro, a linguagem com vírus do esquecimento, aquela que surge do nada para chegar ao lugar onde ninguém a lembra. «Poesia» é pois a linguagem do movimento perpétuo, da evolução, do envelhecimento, da sabedoria.
O filme inicia-se com a imagem de um rio, a água (símbolo da vida) que se movimenta sobre as lembranças de águas passadas (vidas que vão passando, outras que se vão perdendo, sem respeitar o curso do temo). Nas margens desse rio, as crianças avistam um corpo de uma jovem boiando na água. Ou seja, na água viva jaz a mudança e acontece prematuramente a morte. É esta a dinâmica central do filme: vida, memória, mudança, morte e esquecimento.
Mija, uma senhora de 65 anos, vai ser o instrumento desta dinâmica, o instrumento humano que vai despir a palavra e resgatar a inspiração poética. Mija vive com o neto adolescente que lhe foi entregue por uma mãe ausente após um divórcio. Mija é também uma belíssima mulher que gosta de se adornar de rendas e flores como se ela própria fosse o corpo da palavra que se vai despindo, oferecendo-se ao sacrifício da poesia. Mija é também cuidadora de um idoso vítima de um AVC, dependente e perto da fase final da vida. Mas Mija vem a descobrir que também ela está em transmutação, sendo-lhe revelado o diagnóstico da doença de Alzheimer. Aparentemente na fase inicial, Mija começa a esquecer os substantivos, saberá mais tarde que a doença a levará a esquecer o verbo e por fim a palavra. A protagonista acaba por se inscrever num curso de poesia. O professor deste curso ensina que a poesia está no coração de cada um, nos corações que são povoados por flores e Mija “que sempre gostou de flores e sempre usou palavras estranhas” acaba por ficar convencida que facilmente conseguirá fazer poesia. Mas não, a poesia não é sonho, não é nada de idílico, nada que ultrapasse o seu real e dramático quotidiano. O drama da protagonista passa pelo realismo de reconhecer a dor, saber o seu nome, e de lutar para que a verdade não seja camuflada, esquecida.
Mija descobre que o corpo que boiava no rio era de uma aluna que o neto violou com outros seis colegas do liceu. Os pais dos alunos tudo fizeram para silenciar a mãe da menina morta. Tudo passaria por conseguir um acordo que envolve dinheiro, num contexto de poder, doença e hipocrisia, um terrível realismo que acaba por contaminar a “ inspiração poética “ de Mija .
É em virtude do drama que vai assistindo que Mija desnuda o ensinamento do professor de poesia. Quando em determinado momento, o professor aconselha a olhar a maçã de um modo diferente para compreendê-la, Mija contrapõe a sua visão poética afirmando, (enquanto contempla a maçã) que: “é melhor comê-la, em vez de olhá-la”.
E assim faz com o drama da morte da menina. Em vez de camuflá-la, denuncia o crime, evitando assim o esquecimento de alguém que foi real. A menina morta no rio chamava-se Agnés. Esta morte, esta menina foi a realidade que Mija não quis ocultar. A poesia do filme reside neste não esquecimento, evitando que a água do rio lavasse a memória de Agnés. Assim termina este maravilhoso filme: com o “Canto de Agnés” um poema escrito por uma paciente de Alzheimer contra todo o esquecimento. Um filme que não pode deixar ser premiado com os melhores adjectivos que a memória grava, para ver, rever e que jamais se esquecerá.
Terrence Malick já tinha deslumbrado o cinema em trabalhos anteriores, mas com The Tree of Life conseguiu convencer Cannes arriscando um tema polémico: a vida, a morte e a velha questão da presença de um Deus nesta história. Malick utiliza a sua mestria na arte de filmar o «belo» colocando Deus à prova, convidando-o a sentar-se na plateia, fazendo-lhe uma perseguição implacável. Mais do que um ajuste de contas, Malick faz do cinema o seu firmamento. Há momentos em que parece ditar toda uma nova metafísica, o que pode ser abusivo quando por vezes o espectador não quer ser confrontado com certas questões. Aí surge o risco de o espectador ser invadido quando está na fase em que considera que “há metafísica bastante em não pensar em nada”!
Antes de tudo importa referir a máquina, a indústria sob a qual se esconde a fórmula que assenta a divulgação de um filme. Recordando Hereafter de Clint Eastwood o tema introduzido por Terrence Malick não é menos polémico, mas convenceu melhor. O tema passou para segundo plano pois no trabalho de Malick, o que prevalece é a poética, a estética. E Terrence Malick sabe filmar de forma única. Que esplendor! Ninguém pode ficar indiferente a tanta beleza! O deslumbramento com a imagem faz com que o espectador dê benefício à dúvida (ou ao tema polémico) ou nem sequer a coloque.
O primeiro apontamento para The Tree of Life vai pois para a excelência da selecção musical! Terrence Malick conseguiu que o cinema cantasse um Requiem. Nota particular para a presença da música de Zbigniew Preisner, Bach, Brahms e Shumman, entre outros. O Realizador vai ao Livro do Génesis e desconserta o mito: no princípio não foi o Verbo, foi o Som!
As cenas relacionadas com a criação do universo, (talvez demasiadas) recordam os primeiros andamentos da Die Schöpfung (A Criação) de Haydn, ou os Planetas de Gustav Holst. Mas o filme perde face à ausência de alguma contenção no recurso às imagens do Bing Bang, ou Bing Om, se considerarmos que no princípio foi o som.
Nota particular para a Lacrimosa de Z. Preisner que vem inverter a sequência tradicional de uma Missa de Requiem e aí sob o efeito da imagem e da música, Deus comove-se, enterra-se na cadeira da sala de cinema, olha grande tela e diz: «isto é bom! »
The Tree of Life, obra de distinguida em Cannes com a palma dourada, dá-nos a conhecer o "caminho da Natureza" e o "caminho da Graça", tese que Malick tenta provar ao longo do filme, a dicotomia entre a natureza e a capacidade de a transcender. O que acontece a quem escolhe estes caminhos?
Quando o filme projecta a origem do mundo, o surgimento das espécies pré-históricas o realizador faz uma apologia do "caminho da Natureza", das suas leis físicas, quânticas ou semânticas. “O caminho da natureza” rege-se pela lei do mais forte, a lei da sobrevivência. Mas o espectado foi previamente avisado - logo nas primeiras cenas- que o filme nos levará a outros caminhos, onde vão ser medidas forças ditadas por outras Leis: a Lei do Amor e da morte, sob o signo da dor.
E o que é o “Caminho da Graça"? Malick pretende testar se os Homens são feitos à semelhança de Deus. Será Deus Pai? A ser assim o que dizer do pai (Brad Pitt) da família O'Brien? Se assim for, que pai é esse, que falha na misericórdia e é implacável nos seus desígnios? A história da família O'Brien é a parte mais bela do filme, talvez só isso bastasse. O cenário idílico de aparente comunhão e harmonia que se vai materializando na vida da família remete para o jardim do Éden, a terra prometida, o paraíso a cada esquina.
Porém e tal como num Requiem, a tensão vai crescendo num premonitório caminho para a dor, a inevitabilidade do sofrimento. O amor dos irmãos, a beatitude da mãe, Caim e Abel, Maria e todos os dogmas que se associaram à «sagrada família» são postos à prova, em magníficas cenas de época , com interpretações de luxo. Como num Requiem canta-se a Lacrimosa, o Dies Iriae e o dia da ira acaba por chegar, só que não se vê a morte, passa-se de imediato para a Lux aeternam, para a visão prospectiva da vida depois da morte de um filho.
Malick começa a filmar em crescente tensão, criado atritos e tensões nos movimentos das crianças e dos animais que brincam neste mundo visual, arriscando filmar um cão sem pêlo, um rapaz sem cabelo, a morte prematura de um jovem, a iminência de um crime entre irmãos. Toda estas cenas são magníficas, sublimes, mas seria desnecessário incorrer na metafísica criada pelo projecto dopróprio Malick.
Há cenas que podem ser simbolizadas mas não representadas. Neste domínio, a conjugação do êxtase que a natureza oferece com o seu pendor divino, não deveria ser transposto para a tela (ou imposto no mínimo) por uma razão muito simples, um realizador não é um profeta e nem sempre os seus espectadores seguem a sua gnose.
De resto tudo é perfeito. Sean Penn está magnífico, perdido, deambulando na dúvida...
Talvez tudo fizesse sentido acabar naquelas cenas de angústia, memória e saudade. Pois é assim que vivemos alimentando-nos das memórias, na angústia de Deus ou da (sua ausência) e na saudade do que não sabemos se existe.
Quanto vale uma cópia sobretudo se for autenticada? Quanto vale uma reprodução de uma obra de arte se imitar, de forma perfeita, aquilo que se pretendia na produção original? De que vale a réplica ou a tréplica de diálogos já tantas vezes reproduzidos nas nossas histórias mais intimas? Este será um novo Abbas Kiarostami, ou tratar-se-á apenas de um regresso da mestria, da mesma técnica mas em cenários distintos? Kiarostami veio recriar a sua tese a Itália. Com esta Cópia Conforme o realizador assina a sua a sua segunda longa-metragem feita fora do território iraniano. Kiarostami muda de cenário sem mudar a traça original da sua obra. Poderíamos afirmar que se este filme fosse uma cópia do trabalho do realizador, o plágio estaria mais do que autenticado. O filme é rodado na Itália, segundo berço da civilização ocidental, não fora a Grécia o modelo primeiro de todo legado romano. Um filme fora de portas, com actores de outras nações, diferentes pátrias, línguas, credos e tempos. O cenário decorre numa pequena aldeia da Toscânia. Lá encontra-se um casal Juliette Binoche e o barítono William Shimmel. As personagens encontram-se numa conferência em que Shimmel apresenta o seu livro, Juliette Binoche é dona de uma galeria de arte e assiste à palestra do autor como se jamais o tivesse conhecido. No decurso da narrativa, enquanto as personagens passeiam pelas aldeias Toscanas o tema “cópia” é uma constante. Kirostami adensa esta temática no discurso do casal, que se debate entre os valores da originalidade, da simplicidade e suas evidentes contradições. Kiarostami vai mais longe na temática da cópia. Este realizador iraniano atreve-se a filmar a fusão entre arte e religião e par isso recorre a cenários da bella Itália, o berço do renascimento, como se o neo-classicismo do século XV/XVI fosse ele próprio uma cópia autenticada, não perdendo por isso o seu valor. A ideia permanece, tudo é uma cópia de algo. Existirão originais? Sim existem mas apenas naquilo que é simples. Assim comenta Shimmel, "ser simples não tem nada de simples" daí a complexidade da Arte. E se a verdadeira Arte e a nossa história (história dos povos, das culturas, da religião, do cinema, da humanidade) não for além de uma contínua repetição de formas, com diferentes personagens tempos e cenários? Talvez seja isso que Kiarostami quer testar. Até que ponto a originalidade não será redundante? Até que ponto filmar em Itália, no Islão, ou no berço do cristianismo será apenas um retorno às questões essenciais? No centro da história o casal vai-se transfigurando, o tempo é uma barreira que não existe, tal como a língua (cada uma das personagens domina uma das línguas, o francês, o inglês, o italiano) uma babel reinventada, as línguas como heranças, cópias reinventadas de tempos idos. A relação do casal adensa-se à medida que os minutos passam e os cenários se tornam mais intimistas. Subitamente, inexplicavelmente, o discurso torna-se repetitivo como se os desconhecidos se conhecessem há mais de 15 anos, como se tivessem sido casados, como se tivessem sentido o desgaste das ilusões, como se a história do próprio casal fosse apenas a cópia daquilo que o realizador já experimentou também na sua vida emocional. Eis a tese confirmada por Kiarostami: o criador, o autor de uma obra de arte limita-se a recriar vivências, experiências e sob a forma de arte dar-lhes o selo de originalidade. Se assim é Kiarostami consegui mais uma vez, como se de uma cópia se tratasse realizar uma obra-prima, que não significa necessariamente a obra primeira e felizmente não anuncia que o trabalho do mestre não se repita.
Era uma vez um país formado de siglas, letras esparsas, compassos longos escritos em dó (lamento) maior, opressão e autoritarismo.Certo dia, as siglas caíram e o país ficou destroçado sob as sombras do regime que fez tombar estátuas e sonhos, perpetuando a arte como única forma de expressão da identidade de um povo. Era uma vez a antiga URSS, o teatro Bolshoi, Fiódor Dostoiévsky, crime, castigo e a redenção: a música de Tchaikovsky. Senhores e senhoras bem-vindos ao Concerto. O realizador é romeno (Radu Mihaileanu), o maestro é russo, Andrei Filipov (Alexei Guskov) e a orquestra, uma parceria europeia onde há lugar para judeus, ciganos, eslavos, latinos, russos e uma solista do país da igualdade, da liberdade e da fraternidade (interpretada por Mélanie Laurent). É este o tema central do Concerto, uma ode à unificação dos povos, à queda dos muros, à arte em detrimento da política; à música de Tchaikovsky. Era uma vez um maestro que recusou as imposições governamentais do regime de Brezhnev e optou por não afastar os músicos judeus que integravam a Orquestra Bolshoi. Nesse fatídico dia, um solo de violino foi interrompido pelas forças do regime que invadiram o palco, dilacerando famílias, rasgando uma das mais belas partituras de sempre: o Concerto para Violino em Ré Maior de Tchaikovsky. Entretanto, passados 30 anos, o regime comunista caiu e Andrei, o antigo maestro, é agora empregado de limpeza do Teatro Bolshoi. Uma noite apanha um fax com um convite do Teatro de Châtelet para que a Orquestra de Bolshoi vá tocar a Paris. Nesse momento Andrei decide reescrever a história pelas suas próprias mãos. O maestro inicia um frenético contacto com os seus antigos músicos. A ideia é criar uma outra orquestra e, fazendo-se passar pela Orquestra de Bolshoi, viajarem para Paris e actuarem no Châtelet de modo a levarem a cabo o outrora interrompido Concerto para Violino de Tchaikovsky. O Concerto é uma verdadeira tragicomédia. O ritmo é frenético (por vezes a lembrar Emir Kusturica) e as personagens são magnificamente estereotipadas, dando-nos um retrato de uma Rússia desordenada, ainda a tentar recompor-se da derrocada do regime comunista. Há a sobriedade e a nostalgia dos grandes nomes da cultura da Rússia, o retorno à Paris simbólica, as trapalhices dos russos, os esquemas dos ciganos e as traficâncias dos judeus. Este Concerto é também uma paródia muito actual que conta com uma excelente banda sonora em crescendo emocional, gradualmente revelando a trama de um enigma que testemunha o drama dos efeitos do regime da ex-URSS na vida dos seus cidadãos. Uma nota acentuada, muito particular, para a excelência da interpretação de Alexei Guskov, sublime! Viva este maestro! O Concerto é um filme divertido e despretensioso, uma comédia que deixará o espectador com um sorriso na cara e lágrimas de puro êxtase. Para aplaudir de pé e deixar soar a ovação que se segue aos grandes momentos musicais: Bravo!
Quando era criança gostava de saltar para dentro de poças de água com os meus botins de borracha. Nos fins de tarde, subia aos ramos das amoreiras para recolher as folhas que alimentavam o exército de bichos de seda capsulados em caixas de sapatos. Esperava por todas as Primaveras para ver o voo das borboletas brancas. Mas por vezes, as borboletas nasciam mais cedo, abandonavam a caixa escondida debaixo da cama, decorando as paredes do quarto como uma metamorfose precoce de tons acinzentados. Depois a caixa ficava vazia debaixo da cama e os casulos esburacados avisavam que tinham cumprido a sua missão. Quando os botins de borracha deixaram de me servir, comecei a passar por cima das poças de água. Ontem fui ver o Cisne Negro e lembrei os bichos que escondia na incubadora de cartão. Curiosamente sempre gostei mais das lagartas do que das borboletas! Darren Aronofsky e Natalie Portman têm estado há muito tempo fechados em caixas de sapatos! Agora é a vez do espectador sair, ir ao cinema e, o mais importante não se deixar levar por etiquetas da indústria cinematográfica. Pensar pela sua própria sensibilidade. No Cisne Negro não há o triunfo do cinema sobre a música, ou sobre o ballet (essa discussão é estéril quando se fala de artes maiores). O cinema vale o que vale e este Cisne terá certamente o mérito de levar muita gente a outras salas! Aos auditórios onde tocam grandes orquestras sinfónicas e onde dançam companhias de bailado (clássico ou contemporâneo) verdadeiramente excepcionais. Oxalá apareça em breve um realizador que consiga passar para o grande ecrã, um filme e uma atriz capacitados a despertar a atenção para as artes do trabalho vocal onde ainda há tanto preconceito. De resto se o filme é bom ou mau, o critério passará pelo crivo de cada um. Fica o convite para que não nos deixemos levar por entusiasmos empacotados para as massas, urge olhar a arte (ou descobri-la) de acordo com aquilo que verdadeiramente nos causa um arrepio na pele e na alma. Pela nossa parte fica o convite, vejam muito cinema e sigam-no até onde ele vos levar: atrevam-se a tirar caixas de sapatos debaixo do colchão ou então, comecem a dançar descalços dentro de poças de água.
A primeira reacção perante um tema que não se conhece é geralmente tentar ridicularizar o seu conteúdo. Outra reacção possível é deixar passar os anos, esperar a chegada de todas as peças do puzzle e, por fim, lançar mãos à obra.
Sendo a morte inadiável e incompreensível as três piores coisas que se podem fazer com ela são: lamentar a sua existência, teme-la ou ridiculariza-la. Foi por este motivo que, aos 81 anos, Clint Eastwood teve a coragem de filmar a sua forma de não compreender a morte.
Esqueçam tudo o que já viram do trabalho de Tim Burton, esqueçam todas as adaptações do universo de Lewis Carrol e comecemos pelas evidências.
Era uma vez um chapeleiro louco que convidou um realizador não menos alienado para tomar um chá. Ao chegar ao fundo da toca do coelho o chapeleiro disse: “Burton! Estás muitíssimo atrasado. Maroto!” A profecia cumpriu-se. Alice no País das Maravilhas é, antes de mais, uma inevitabilidade na obra de Burton. Afinal o realizador sempre andou “no outro lado do espelho”. Eis pois a primeira evidência: Alice no País das Maravilhas vale pelo reencontro de dois mundos paralelos. A reconfiguração visual e estética do universo de Lewis Carrol é conquistada por este Burton no País das Maravilhas. Sem grande esforço, como uma espécie de intrusão consentida, Tim Burton ocupa o território de Carrol concretizando uma espécie de profecia. Segunda evidência: Burton retrata uma das características mais marcantes no livro de Carroll: o apelo à imaginação. Guiados pela fantasia de Tim Burton acabamos por reinventar a “nossa”Alice. A adaptação vai para além de uma história para crianças. Em jeito de conto fantástico, Burton recupera a Alice para todos os adultos que a deixaram perdida em Hampstead Heath. Para onde vai a Alice de Tim Burton? Para o Underland ou para a Wonderland? Alice está nitidamente entre os dois mundos coexistentes na obra do realizador. Mia Wasikowska é Alice reinventada, regressa aos 19 anos ao excêntrico mundo que encontrou quando era criança reunindo-se com velhos amigos de infância: o Coelho Branco, Tweedledee e Tweedledum, a Ratazana, a Lagarta, o Gato Cheshire, o Chapeleiro Louco e claro o próprio realizador, ou não fora ele também personagem deste “Estranho mundo de Carrol”. Outra evidência: Burton sabe escolher personagens. O chapeleiro louco, velho amigo de Alice é interpretado por e Johnny Depp. Jonnny e Tim são uma dupla de sucesso, basta recordar Eduardo Mãos de Tesoura, Ed Wood, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, Charlie e a Fábrica de Chocolate, A Noiva Cadáver e Sweeney Todd. Mais uma vez a parceria resultou, Johnny Depp assenta que nem uma luva na personagem meio louca especialista na dança Futterwacken. Outra parceria de sucesso com Tim Burton é Helena Bonham Carter a vilã, rainha da cabeça gigante, de vasta cabeleira vermelha e o vício hilariante da decapitação. Anne Hathway é a Rainha Branca. Personagem supostamente cândida, alva, sonsa, plena de maneirismos barrocos, trejeitos punk-gótico-vegans, absolutamente “burtoniana”, uma delícia. Há oráculos, a centopeia azul (magnífica a voz de Alan Rickman), há malteses, o gato Cheshire e um coelho branco. Há um guarda-roupa absolutamente genial - sem dúvida um dos pontos altos da recriação de Tim Burton - há ainda a música de Danny Elfman, pois claro. Tantas são as cores, os pormenores, as referências estéticas. Por tudo isto, Alice não é o filme mediano do realizador, é a viagem prometida, uma passagem obrigatória. Por vezes importa esquecer tudo o que já vimos, perder a razão. Esta Alice pode ficar a perder perante as maiores criações de Tim Burton, mas quantas vezes tem o criador de cair no buraco para recuperar a fórmula certa? Burton sabia o risco que corria em alinhar com uma grande produção e todo o hype alucinado que se criou em torno do filme. Citando o chapeleiro que se dizia louco: “existe um mundo fantástico, uma terra de maravilhas, mistérios e perigos”, foi aí que Burton mergulhou. “Some say to survive it: you need to be as mad as a hatter”. É esta a Alice de Tim Burton: um encontro tardio para um chá, um banquete fantástico. Em suma, um capricho com assinatura de um dos maiores chapeleiros vivos.
Disney (2010), DVD9, 104 mins
SA, Revista Audio e Cinema em Casa, edição 227 ( Jan/Fev 2011)
Sempre que atravesso uma ponte, não deixo de aguardar o voo das mariposas...
Cheguei aqui de mãos vazias e pés descalços. Gosto de dias de chuva em que o sol bate na janela. Gosto de Clint Eastwood.
Posso dizer que já cheguei a lugar algum. Avanço num caminho que, de tão incerto, me chama mais que tudo o que escolhi não querer. Estou mais perto... e curioso: cada vez com menos medo.
" ... e afinal, depois de tanto viver o melhor ainda por aí vem!"
O Laço Branco é mais do que um jogo de sugestões perigosas. É um exercício maniqueísta que sugere a dualidade do bem e do mal, a coexistência de luz e sombra, pecado e redenção (+)
Shutter Island leva-nos a recordar a letra do tema celebrizado por Paul Simon: 'i am a rock, i am an island, and a rock feels no pain, and a island never cries…(+)
Não há liberdade ou salvação pela morte. Malik, o novo “Profeta”, opta pela sobrevivência em detrimento de uma falsa liberdade que tantas vezes implica a renúncia à vida. (+)
Aplaudi Pessoa que canta a morte do Rei na pauta de um compositor vivo. Aplaudi Pessoa, na sala magna que se ergue em Belém, e voltarei sempre a aplaudi-lo na Rua dos Douradores onde posso ir ainda esta tarde, se para lá se encaminharem os meus desassossego (+)
saudades do José o Homem, com todo o seu amor pelas coisas tardias e tristeza pelas sombras de um mundo louco. Homem com noção da finitude do tempo, para quem o espaço e a eternidade têm nome de mulher. Gostaria de lhe ter dito obrigada: “obrigada José”, mas o silêncio imperou. Ele partiu cansado porque deixou obra feita, e nós cá ficamos, cansados da falta de coragem para lançar as mãos à obra. (+)
SA
2010 não foi um dos anos mais felizes na sala escura. O destaque vai para as excelentes iniciativas do Indie Lisboa, do Festival de Cinema Francês mas acima de tudo, a magnifica edição do Doc. Lisboa. Foi sem dúvida no circuito destes três eventos e nas sempre louváveis sessões da Cinemateca Portuguesa, que passei os melhores momentos em cinema. Palmas a M. Haneke que merece o lugar de destaque tal como já tinha sido relatado aqui.
Chovia em Lisboa. Chuva triste, sem esperança, anunciando negrumes e tempos mortos. Nas artérias do centro da cidade corriam manifestações, protestos e tintas ensanguentadas, misturadas de água turva que a chuva fazia escorrer no asfalto. Gritava-se não à aliança que fez de Lisboa um circo de bestas em blindados afectos. Lisboa viveu dias cinzentos. Foi “capital política do mundo” e por alguns dias foi a cidade mais triste do mundo. Vivemos o desassossego de sirenes histéricas, polícias hostis e seus cães de fila, a parafernália televisiva, o protocolo a tiracolo e a chuva impiedosa. O universo é inteligente e, por vezes, também conspira. Quando assim é não há aliança nem pactos que lhe façam frente. A parafernália acabou seguida de um domingo sereno mas ainda triste e chuvoso. Lisboa banhava-se em poças de lama como a mulher da rua que se vendeu ao trabalho das esquinas, adormecendo sob a falsa ideia de esperança e redenção. E lá saíram à rua, aqueles que se absteram de protestar, de lutar, de se insurgir. Lá saímos à rua “os cansados”, os bloqueados nos semáforos, nós vítimas da cegueira, “os amorfos”, os conformados, procurando abrigo no melhor albergue da cidade. O meu abrigo foi uma sala de cinema onde testemunhei como se documentou a vida de um dos homens maiores nascidos nesta terra. O seu nome, Saramago. José. Nome de erva do campo, margaça, húmus do chão d’ Azinhaga, terra arriba Tejo, entre salgueiros tristes, mantas lobeiras, cheiro a musgo e verão seco. Terra que o homem teve de abandonar, para fugir para a ilha da montanha branca, o seu “Evareste”. Recomendo a leitura das “Pequenas Memórias” do José. Lá está tudo o que o documentário vem complementar. A continuidade da história, após a vida de Salomão e a polémica do Caim, vocês já sabem... A narrativa está agora a cargo da Senhora Presidenta. Venham muitos anos Pilar (não menos do que aqueles que tardaste a chegar) para continuares o vosso plural, a vossa dualidade e unidade, a vossa obra, sem cansaço pois a eternidade tem (tanto) tempo… E mais não descrevo pois não sei escrever sobre a vida de grandes homens e suas mulheres. Muito menos saberia filmá-lo ou contá-lo, ou sequer prestar-lhe homenagem. Depois do documentário senti ainda mais orgulho de ter nascido na terra do José, na “pátria”- como ele chamava. Senti perto uma espécie de dupla nacionalidade ibérica metaforizada em jangada de pedra, orgulho de ter nascido num país que me doou a “mais bela língua do mundo”. Saudades do José Saramago, o escritor. Mas acima de tudo, saudades do José o Homem, com todo o seu amor pelas coisas tardias e tristeza pelas sombras de um mundo louco. Homem com noção da finitude do tempo, para quem o espaço e a eternidade têm nome de mulher. Gostaria de lhe ter dito obrigada: “obrigada José”, mas o silêncio imperou. Ele partiu cansado porque deixou obra feita, e nós cá ficamos, cansados da falta de coragem para lançar as mãos à obra. Talvez ainda tenha a coragem de começar a fazer qualquer coisa. “Faça qualquer coisa por isso...”, foram estas as palavras que ficaram para além de tantas outras escritas nos livros. Obrigada José, continua Pilar…
A todos os que na passada semana nos disseram "Adeus".
Symphony Of Sorrowful Songs, Henryk Górecki. Do filme "HOLOCAUST - A Music Memorial Film from Auschwitz". Soprano: Isabel Bayrakdaraian, Sinfonietta Cracovia, direcção John Axelrod.
Persona: Um blogue, ou coisa que o valha, assinado por SA que um dia se chateou com o anonimato e decidiu testar o poder das siglas.
Um espaço ainda sem o nome da autora mas com registo de autor (a malta aqui não coloca palavras no prego).
Uma parceria sonora e gráfica com o Bitsounds.
Vendemos para fora e fazemos entregas ao domicílio.
Não vamos aderir ao acordo ortográfico.
Blogue não testado em animais!
O primeiro filme da colecção, apresentado no festival de Berlim em 2006, consiste num retrato do artista austríaco Gustav Klimt cujas pinturas sexuais vieram simbolizar o estilo de Arte Nouveau do final do século XIX e início do século XX.
O filme de Raúl Ruiz não é só um trabalho sobre a vida do pintor austríaco, é também um testemunho da realidade artística e conceptual da Europa no final do século XIX. Nestes tempos de mudança, Klimt assume-se como um artista controverso, o expoente máximo do simbolismo, do erotismo e da liberdade sexual em constante oposição com a ideia de arte predominante. Ruiz não se priva de inúmeras referências estéticas acabando por transformar o ecrã numa tela onde são retratados personagens ambíguas que surgem como uma espécie de consciência sublimada. Há momentos no filme que são quase cópias das cores e das técnicas do pintor. A escolha das personagens, do guarda-roupa e dos cenários são irrepreensíveis. Às pinturas de Ruiz acresce a magnífica fotografia de Ricardo Aronovich abundante em tons dourados e espelhos quebrados que remetem para as criações de Klimt. Da mesma forma que o trabalho de Klimt é intencionalmente simbólico, todo o filme é uma alegoria assente na dualidade entre consciência e realidade. Malkovich é a escolha perfeita. Porém apesar do imenso impacto visual e estético deste filme, Ruiz dá excessiva tónica aos diálogos de ordem filosófica que, se compararmos com a Morte em Veneza de L. Visconti por exemplo, acabam por ser repetitivos e por vezes exagerados. Contudo mais do que um exercício pictórico, Klimt é um filme que consegue trazer para o cinema a arte e a técnica de um dos maiores pintores europeus do início do século XX.