05/07/11

Edição de Julho: Poesia



Quando se entra na livraria comum e procuramos a secção de «Poesia» normalmente percorremos um longo corredor que nos conduz a uma pequena estante onde jaz o pó dos livros e a beleza das memórias.
Como a água de um rio sabemos que o percurso tem um movimento, uma intenção, um fim. Se a «Poesia» fosse um produto de hipermercado normalmente procuraríamos por ela na secção gourmet, os balcões dos raros apreciadores, das pessoas que gostam de «coisas esquisitas», dito de outra forma: a poesia como produto para os mais requintados ou excêntricos.

Engane-se o espectador que vem ao filme “Poesia” Lee Chang-dong pelo título. O que o realizador nos traz é veia realista da “poesia” encorpada numa personagem excessivamente real que vive dramas concretos.
Ilude-se que procura neste filme paisagens idílicas, lugares e tempos poéticos da mística oriental. Poesia é tratada como palavra nua. Dizia Octavio Paz que “a palavra quando é criação desnuda”. Lee Chang-dong identifica a poesia como uma dinâmica, um caminho: a revelação do ser, a consciência de si. A «Poesia» deste realizador sul-coreano ensina a conjugar verbo e tempo.

O filme imprime na história de quem se rege pelo desafio da poesia, a forma se desaprender, de se desnudar. Como escreveu Pessoa esta é a história de quem se propõe a “esquecer-se do modo de lembrar que me ensinaram”. Talvez seja por isso que um dos temas centrais deste argumento é a descoberta que a protagonista faz, Mija (que queria aprender a escrever poesia) descobre que sofre da doença de Alzheimer. Neste filme a beleza não é o resultado de uma paisagem, da arquitectura das palavras, não nasce da predisposição do artista. A beleza acontece no curso de um processo: o processo da palavra que se despe, a palavra que se via esquecendo da sua função.

Lee Chang-dong vem questionar o papel da poesia nas sociedades modernas. Ao contrário da linguagem da pintura, da música, da dança, a poesia foi perdendo conceito, território e validade. A linguagem poética passou a ser um prazer dos excêntricos, um produto raro, a linguagem com vírus do esquecimento, aquela que surge do nada para chegar ao lugar onde ninguém a lembra. «Poesia» é pois a linguagem do movimento perpétuo, da evolução, do envelhecimento, da sabedoria.

O filme inicia-se com a imagem de um rio, a água (símbolo da vida) que se movimenta sobre as lembranças de águas passadas (vidas que vão passando, outras que se vão perdendo, sem respeitar o curso do temo). Nas margens desse rio, as crianças avistam um corpo de uma jovem boiando na água. Ou seja, na água viva jaz a mudança e acontece prematuramente a morte. É esta a dinâmica central do filme: vida, memória, mudança, morte e esquecimento.

Mija, uma senhora de 65 anos, vai ser o instrumento desta dinâmica, o instrumento humano que vai despir a palavra e resgatar a inspiração poética. Mija vive com o neto adolescente que lhe foi entregue por uma mãe ausente após um divórcio. Mija é também uma belíssima mulher que gosta de se adornar de rendas e flores como se ela própria fosse o corpo da palavra que se vai despindo, oferecendo-se ao sacrifício da poesia. Mija é também cuidadora de um idoso vítima de um AVC, dependente e perto da fase final da vida. Mas Mija vem a descobrir que também ela está em transmutação, sendo-lhe revelado o diagnóstico da doença de Alzheimer. Aparentemente na fase inicial, Mija começa a esquecer os substantivos, saberá mais tarde que a doença a levará a esquecer o verbo e por fim a palavra. A protagonista acaba por se inscrever num curso de poesia. O professor deste curso ensina que a poesia está no coração de cada um, nos corações que são povoados por flores e Mija “que sempre gostou de flores e sempre usou palavras estranhas” acaba por ficar convencida que facilmente conseguirá fazer poesia. Mas não, a poesia não é sonho, não é nada de idílico, nada que ultrapasse o seu real e dramático quotidiano. O drama da protagonista passa pelo realismo de reconhecer a dor, saber o seu nome, e de lutar para que a verdade não seja camuflada, esquecida.

Mija descobre que o corpo que boiava no rio era de uma aluna que o neto violou com outros seis colegas do liceu. Os pais dos alunos tudo fizeram para silenciar a mãe da menina morta. Tudo passaria por conseguir um acordo que envolve dinheiro, num contexto de poder, doença e hipocrisia, um terrível realismo que acaba por contaminar a “ inspiração poética “ de Mija .

É em virtude do drama que vai assistindo que Mija desnuda o ensinamento do professor de poesia. Quando em determinado momento, o professor aconselha a olhar a maçã de um modo diferente para compreendê-la, Mija contrapõe a sua visão poética afirmando, (enquanto contempla a maçã) que: “é melhor comê-la, em vez de olhá-la”.

E assim faz com o drama da morte da menina. Em vez de camuflá-la, denuncia o crime, evitando assim o esquecimento de alguém que foi real. A menina morta no rio chamava-se Agnés. Esta morte, esta menina foi a realidade que Mija não quis ocultar. A poesia do filme reside neste não esquecimento, evitando que a água do rio lavasse a memória de Agnés. Assim termina este maravilhoso filme: com o “Canto de Agnés” um poema escrito por uma paciente de Alzheimer contra todo o esquecimento.
Um filme que não pode deixar ser premiado com os melhores adjectivos que a memória grava, para ver, rever e que jamais se esquecerá.

Poesia, Lee Chang-dong

SA, Revista Audio e Cinema em Casa (Julho 2011)
Com tecnologia do Blogger.




 
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