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O filme não é fácil, é cru, espinhoso e extraordinariamente denso. Acaba por ser complicado manter a atenção focada nas palavras de Bernardo Soares perante o convite constante à rendição e à sedução da forma. João Botelho consegue a perfeita dicotomia entre a forma e o conteúdo das palavras. Para isso recria cenários belíssimos, uma fotografia magnífica, a lucidez atroz das figuras e das personagens, uma moldura musical que nos sossega e enfeitiça.
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Tenho um Livro chamado Desassossego à cabeceira que vai ganhando o pó dos livros, o preço das almas quando se param de pensar. Como no retrato do Jovem Dorian de Wilde, serve o Livro do Desassossego para absorver, na minha cabeceira, os meus demónios e inquietações. Lê-lo só quando tenho tempo e isso, e o tempo, é outro conceito que por vezes quero distorcer. Há dias em lhe toco, outros dias em que, longe do Livro, o recordo em desassossego há outros dias, quando o alvoroço se aquieta, que o leio, como se o devorasse.
Mas o texto é sempre duro, cru e provoca em mim o alvoroço do fim do sono. Nem sempre a música nos leva a cair nas armadilhas do génios. E se a literatura é esse acordo entre a arte de não ser e o compromisso da morte que se desconhece, o desassossego pode ser travado com outros bens de consumo imediato que evitam o irrequieto encontro com a densidade existencial que queremos fingir que não existe, ou que nos poderá vir a incomodar neste conforto inventado.
Escreve Fernando Pessoa no seu Livro do Desassossego “Comboio andando ao Cais do Sodré. Chego a Lisboa mas a nenhuma conclusão". Assim acontece nestes meu tempo de grande desassossego. Não mais de duas semanas depois de regressar a Lisboa mas já sem conclusões…
O que é isto de optar e regressar à pátria da língua portuguesa? Porquê este desejo de não partir que coexiste com a vontade de não querer ficar? A sedução que esta Lisboa me canta, a velha sensação de dela estar cansada e a saudade antecipada de optar por a deixar.
Estas e outras inquietações relembraram-me o oco no estômago e foi assim, de vísceras secas e olhos húmidos, que me senti na estreia do Filme do Desassossego de João Botelho.
Estas e outras inquietações relembraram-me o oco no estômago e foi assim, de vísceras secas e olhos húmidos, que me senti na estreia do Filme do Desassossego de João Botelho.
Aplaudi. Aplaudi Pessoa na língua que é dele, na língua que ele reinventou para ser sempre nossa. Aplaudi Pessoa documentado num devaneio de um realizador português. Aplaudi Pessoa que canta a morte do Rei na pauta de um compositor vivo. Aplaudi Pessoa, na sala magna que se ergue em Belém, e voltarei sempre a aplaudi-lo na Rua dos Douradores onde posso ir ainda esta tarde, se para lá se encaminharem os meus desassossegos...
E voltarei a ver o filme, talvez quando tiver chegado a uma conclusão sobre continuar a viver em Lisboa. Uma coisa é certa, a minha pátria será sempre a língua portuguesa, este é o único conforto que o Desassossego me oferece.