30/09/10

Filme do Desassossego. Pessoa em Português, da Rua dos Douradores para a Humanidade Inteira

Entrei no grande auditório do CCB com esperança quase nenhuma de sentir surpresa de coisa alguma. Pensava ser impossível filmar um dos maiores livros de sempre. A velha máxima de que - dificilmente o cinema consegue alcançar a enormidade dos livros maiores - é sempre um excelente pretexto para nunca voltar a ler o Livro que já rotulámos de Obra Prima. Este sabor a pouco serve-nos de preguiça e consolo. Ontem fui surpreendida pelo "pontapé" do Botelho que me levou a pegar no Desassossego de Pessoa e lá caíram as máximas, as leis do cinema e da literatura. Caiu por terra o consolo e daí o"desassossego" de ter de vir aqui e escrever para lhe fazer justiça.
O filme não é fácil, é cru, espinhoso e extraordinariamente denso. Acaba por ser complicado manter a atenção focada nas palavras de Bernardo Soares perante o convite constante à rendição e à sedução da forma. João Botelho consegue a perfeita dicotomia entre a forma e o conteúdo das palavras. Para isso recria cenários belíssimos, uma fotografia magnífica, a lucidez atroz das figuras e das personagens, uma moldura musical que nos sossega e enfeitiça. A interpretação de Cláudio Silva é magistral, há momentos de ouro elevados nos lábios de Catarina Wallenstein, há cenários perfeitos desta Lisboa que é real. E que maravilhosa forma de filmar esta cidade! E que privilégio é saber que não estamos na presença dos devaneios do David Lynch, nos cenários do Greenaway, no método Eastwood, nas cores de Griffith, no vácuo do Derek Jarman. Sim, venham os aplausos senhores! Pois o nome dele é Botelho, nome que se escreve-se na língua daquele que se escreveu em tantos outros nomes.
Tenho um Livro chamado Desassossego à cabeceira que vai ganhando o pó dos livros, o preço das almas quando se param de pensar. Como no retrato do Jovem Dorian de Wilde, serve o Livro do Desassossego para absorver, na minha cabeceira, os meus demónios e inquietações. Lê-lo só quando tenho tempo e isso, e o tempo, é outro conceito que por vezes quero distorcer. Há dias em lhe toco, outros dias em que, longe do Livro, o recordo em desassossego há outros dias, quando o alvoroço se aquieta, que o leio, como se o devorasse.
Mas o texto é sempre duro, cru e provoca em mim o alvoroço do fim do sono. Nem sempre a música nos leva a cair nas armadilhas do génios. E se a literatura é esse acordo entre a arte de não ser e o compromisso da morte que se desconhece, o desassossego pode ser travado com outros bens de consumo imediato que evitam o irrequieto encontro com a densidade existencial que queremos fingir que não existe, ou que nos poderá vir a incomodar neste conforto inventado.
Escreve Fernando Pessoa no seu Livro do Desassossego “Comboio andando ao Cais do Sodré. Chego a Lisboa mas a nenhuma conclusão". Assim acontece nestes meu tempo de grande desassossego. Não mais de duas semanas depois de regressar a Lisboa mas já sem conclusões…
O que é isto de optar e regressar à pátria da língua portuguesa? Porquê este desejo de não partir que coexiste com a vontade de não querer ficar? A sedução que esta Lisboa me canta, a velha sensação de dela estar cansada e a saudade antecipada de optar por a deixar.
Estas e outras inquietações relembraram-me o oco no estômago e foi assim, de vísceras secas e olhos húmidos, que me senti na estreia do Filme do Desassossego de João Botelho.
Aplaudi. Aplaudi Pessoa na língua que é dele, na língua que ele reinventou para ser sempre nossa. Aplaudi Pessoa documentado num devaneio de um realizador português. Aplaudi Pessoa que canta a morte do Rei na pauta de um compositor vivo. Aplaudi Pessoa, na sala magna que se ergue em Belém, e voltarei sempre a aplaudi-lo na Rua dos Douradores onde posso ir ainda esta tarde, se para lá se encaminharem os meus desassossegos...
E voltarei a ver o filme, talvez quando tiver chegado a uma conclusão sobre continuar a viver em Lisboa. Uma coisa é certa, a minha pátria será sempre a língua portuguesa, este é o único conforto que o Desassossego me oferece.
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