22/11/10

José e Pilar

Chovia em Lisboa. Chuva triste, sem esperança, anunciando negrumes e tempos mortos. Nas artérias do centro da cidade corriam manifestações, protestos e tintas ensanguentadas, misturadas de água turva que a chuva fazia escorrer no asfalto. Gritava-se não à aliança que fez de Lisboa um circo de bestas em blindados afectos.
Lisboa viveu dias cinzentos. Foi “capital política do mundo” e por alguns dias foi a cidade mais triste do mundo. Vivemos o desassossego de sirenes histéricas, polícias hostis e seus cães de fila, a parafernália televisiva, o protocolo a tiracolo e a chuva impiedosa. O universo é inteligente e, por vezes, também conspira. Quando assim é não há aliança nem pactos que lhe façam frente.
A parafernália acabou seguida de um domingo sereno mas ainda triste e chuvoso. Lisboa banhava-se em poças de lama como a mulher da rua que se vendeu ao trabalho das esquinas, adormecendo sob a falsa ideia de esperança e redenção. E lá saíram à rua, aqueles que se absteram de protestar, de lutar, de se insurgir. Lá saímos à rua “os cansados”, os bloqueados nos semáforos, nós vítimas da cegueira, “os amorfos”, os conformados, procurando abrigo no melhor albergue da cidade. O meu abrigo foi uma sala de cinema onde testemunhei como se documentou a vida de um dos homens maiores nascidos nesta terra. O seu nome, Saramago. José. Nome de erva do campo, margaça, húmus do chão d’ Azinhaga, terra arriba Tejo, entre salgueiros tristes, mantas lobeiras, cheiro a musgo e verão seco. Terra que o homem teve de abandonar, para fugir para a ilha da montanha branca, o seu “Evareste”.
Recomendo a leitura das “Pequenas Memórias” do José. Lá está tudo o que o documentário vem complementar. A continuidade da história, após a vida de Salomão e a polémica do Caim, vocês já sabem...
A narrativa está agora a cargo da Senhora Presidenta. Venham muitos anos Pilar (não menos do que aqueles que tardaste a chegar) para continuares o vosso plural, a vossa dualidade e unidade, a vossa obra, sem cansaço pois a eternidade tem (tanto) tempo…
E mais não descrevo pois não sei escrever sobre a vida de grandes homens e suas mulheres. Muito menos saberia filmá-lo ou contá-lo, ou sequer prestar-lhe homenagem. Depois do documentário senti ainda mais orgulho de ter nascido na terra do José, na “pátria”- como ele chamava. Senti perto uma espécie de dupla nacionalidade ibérica metaforizada em jangada de pedra, orgulho de ter nascido num país que me doou a “mais bela língua do mundo”. Saudades do José Saramago, o escritor. Mas acima de tudo, saudades do José o Homem, com todo o seu amor pelas coisas tardias e tristeza pelas sombras de um mundo louco. Homem com noção da finitude do tempo, para quem o espaço e a eternidade têm nome de mulher. Gostaria de lhe ter dito obrigada: “obrigada José”, mas o silêncio imperou.
Ele partiu cansado porque deixou obra feita, e nós cá ficamos, cansados da falta de coragem para lançar as mãos à obra.
Talvez ainda tenha a coragem de começar a fazer qualquer coisa. “Faça qualquer coisa por isso...”, foram estas as palavras que ficaram para além de tantas outras escritas nos livros. Obrigada José, continua Pilar…
Com tecnologia do Blogger.




 
Persona: Um blogue, ou coisa que o valha, assinado por SA que um dia se chateou com o anonimato e decidiu testar o poder das siglas.
Um espaço ainda sem o nome da autora mas com registo de autor (a malta aqui não coloca palavras no prego).
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