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Lisboa viveu dias cinzentos. Foi “capital política do mundo” e por alguns dias foi a cidade mais triste do mundo. Vivemos o desassossego de sirenes histéricas, polícias hostis e seus cães de fila, a parafernália televisiva, o protocolo a tiracolo e a chuva impiedosa. O universo é inteligente e, por vezes, também conspira. Quando assim é não há aliança nem pactos que lhe façam frente.
A parafernália acabou seguida de um domingo sereno mas ainda triste e chuvoso. Lisboa banhava-se em poças de lama como a mulher da rua que se vendeu ao trabalho das esquinas, adormecendo sob a falsa ideia de esperança e redenção. E lá saíram à rua, aqueles que se absteram de protestar, de lutar, de se insurgir. Lá saímos à rua “os cansados”, os bloqueados nos semáforos, nós vítimas da cegueira, “os amorfos”, os conformados, procurando abrigo no melhor albergue da cidade. O meu abrigo foi uma sala de cinema onde testemunhei como se documentou a vida de um dos homens maiores nascidos nesta terra. O seu nome, Saramago. José. Nome de erva do campo, margaça, húmus do chão d’ Azinhaga, terra arriba Tejo, entre salgueiros tristes, mantas lobeiras, cheiro a musgo e verão seco. Terra que o homem teve de abandonar, para fugir para a ilha da montanha branca, o seu “Evareste”.
Recomendo a leitura das “Pequenas Memórias” do José. Lá está tudo o que o documentário vem complementar. A continuidade da história, após a vida de Salomão e a polémica do Caim, vocês já sabem...
A narrativa está agora a cargo da Senhora Presidenta. Venham muitos anos Pilar (não menos do que aqueles que tardaste a chegar) para continuares o vosso plural, a vossa dualidade e unidade, a vossa obra, sem cansaço pois a eternidade tem (tanto) tempo…
E mais não descrevo pois não sei escrever sobre a vida de grandes homens e suas mulheres. Muito menos saberia filmá-lo ou contá-lo, ou sequer prestar-lhe homenagem. Depois do documentário senti ainda mais orgulho de ter nascido na terra do José, na “pátria”- como ele chamava. Senti perto uma espécie de dupla nacionalidade ibérica metaforizada em jangada de pedra, orgulho de ter nascido num país que me doou a “mais bela língua do mundo”. Saudades do José Saramago, o escritor. Mas acima de tudo, saudades do José o Homem, com todo o seu amor pelas coisas tardias e tristeza pelas sombras de um mundo louco. Homem com noção da finitude do tempo, para quem o espaço e a eternidade têm nome de mulher. Gostaria de lhe ter dito obrigada: “obrigada José”, mas o silêncio imperou.
Ele partiu cansado porque deixou obra feita, e nós cá ficamos, cansados da falta de coragem para lançar as mãos à obra.
Talvez ainda tenha a coragem de começar a fazer qualquer coisa. “Faça qualquer coisa por isso...”, foram estas as palavras que ficaram para além de tantas outras escritas nos livros. Obrigada José, continua Pilar…