18/05/10

Istambul. A cidade do Desassossego.


Istambul a Cidade do Desassossego/ I.

Já era noite quando chegámos a Istambul. Percorremos as ruas da cidade sob um calor diferente que adornava a cidadela branca adormecida sob as muralhas de Teodoro. Ao longo do caminho, pelas janelas de uma van regateada em Ataturk, adivinhava-se Sultanahmet. Longas avenidas polvilhadas por recantos misteriosos. Ao longe, entre colinas e sob as cores do céu asiático, avistavam-se gaivotas de Mármora e pássaros negros do Bósforo, zelando o sono dos minaretes otomanos.
Para trás ficava outra Europa, ameaçada por cinzas de um vulcão nórdico, anunciando ventos de descontentamento crescente que renascem em terras helénicas, estendendo-se aos confins do antigo império de César.

Mas na "Nova Roma" a antiga Constantinopla, sopram ventos tépidos e ébrios que exaltam os sentidos dos viajantes, fazendo esquecer as poeiras da meseta lusitana. As gaivotas saudavam-nos num céu púrpura com voos enigmáticos em torno dos minaretes das mesquitas. Em Istambul não há poeiras vulcânicas (Pamplona afinal, é de outros tempos e rotas), mas existem sombras que se estendem como um tapete vermelho, convidando-nos a descobrir de que matéria são feitos os sonhos. Apesar do calor e do cansaço, saímos para praça Sultanamhet onde os gatos davam as boas vindas aos turistas tardios.
Sob o chamamento dos muezzins, os fiéis de Maomé rezavam com os olhos postos em Meca, entoando cânticos do livro sagrado do Profeta. Cheirava a mar e a castanhas assadas. Entre o norte e o sul, algures entre a história antiga e o poder otomano, ergue-se Hagia Sofia que coexiste, omnipotente, ao lado da Mesquita Azul. É monumental! E quem consegue fazer fotos na primeira noite?

Sem palavras, não há imagens para registar senão na memória. E assim é Istambul, uma cidade deslumbrante que se crava na memória e nos encrava o verbo!

A manhã começa fresca sobre a brisa do mar de prata entre sons e cheiros, sabores e cores. A poucos metros do lugar de Theodora (a imperatriz de Justiniano) largámos algumas liras para visitar o Palácio colossal que adormecia em mil e uma noites os encantos de Sherazade. É obrigatório visitar o Harem, monumento labiríntico de mármore e madrepérola vigiado sob o olhar da Valide (a mãe do sultão) e os segredos eunucos. Nesse Harem onde só o sultão tinha direito às delícias dos véus e aos arrrombos dos banhos de vapor, as paredes guardam os segredos de Iznik. A caligrafia rasgada e imperceptível é abundante. O Harem do Pálácio Topkapi é o museu da arte da sedução, dos abusos da ostentação e do poder. Mas o povo turco é acolhedor e sedutor. De largos sorrisos, gestos arrojados que recordam a herança dos genoveses, é impossível não perder o olhar nas pupilas salpicadas de cores e mistérios, decoradas por uma nostalgia ancestral, aliada à sabedoria e artes de mercadores seculares.

No primeiro dia vagueamos pelos contornos dourados do corno de ouro, o braço de água que se estende do Bósforo, dividindo as margens da parte ocidental da cidade. Esta divisão estratégica é conseguida em parceria com Ponte de Gálata. Por todo o lado há pescadores e gaivotas, pescado e iguarias, mulheres de burca e lenços coloridos, olhos rasgados pelas sombras da Shishedo e outras marcas de cosméticos. Olhares cativantes, sem pudores, como se o corpo tapado por uma espécie de gabardine, anunciasse o fulgor do desejo rendado de henna nas mãos das herdeiras de Fátima.
Istambul é uma cidade patriarcal, sem mulheres no comércio, nos bancos, sem cabeleireiros e lojas de estética (à vista). Nesta cidade não se perdem sonhos nos mitos de Dorian Gray. O presente é vivido com os olhos postos nos traços da face e no desenho dos sorrisos ainda que côncavos e resgatados pelo tempo. Em Istambul oculta-se a beleza mas não há vergonha das rugas.

Homens são muitos, tantos, talvez até demais, espalhados pela cidade como os pássaros que rondam os minaretes das mesquitas e... curioso: estão atentos a tudo! Um descuido e num ápice estamos sentados numa loja de tapetes a beber chá de maçã e a levar a maior "cantada" da vida! É difícil distinguir o termo encantador e enganador. O chá, esse, é muito bom! Todos os turcos são músicos, pescadores, vendedores e sultões, donos da arte ancestral de seduzir, vender iguarias e vãs promessas. E curioso, o piropo turco não é ofensivo, muito menos os olhos esmeralda e mel fixados nos ombros lusitanos ainda não decorados pelo sol de Lisboa. Ao longo da Ponte de Gálata, desenha-se um quadro impressionista com pescadores que ensinam os últimos pregões aos peixes.


Por todo o lado há bazares, bancas e pregões indecifráveis, muitas sombras e árvores frescas nas margens do corno dourado, com putos que se atiram ao rio apesar das medusas oleadas pelos motores pesqueiros e cacilheiros pesados. Há o encanto de um bazar que vende especiarias e sonhos egipcíos, anunciam-se danças dos dervixes que rodopiam na aliança entre a música, o êxtase e o divino.

Existem multicolores delícias de mel e frutos secos, cânticos que chamam os fiéis cinco vezes por dia, igrejas bizantinas e recantos ortodoxos ao longo do corno de ouro. É imperdível e imperdoável não seguir as rotas das antigas relíquias de Constantinopla, escondidas nos bairros que os turistas nem se atrevem a pensar. Em Balat abundam as crianças com os olhares furtados pelo olho de Ara Güller. As mulheres escondem-se nas burcas, nos lenços, em janelas recônditas, mas atrevem-se a sorrir se a turista (de decote abusado) lhes esboçar um sorriso cúmplice. Também há velhas bizarras que rogam pragas aos ombros desnudados. Há meninas das medresses que, num inglês doce e quase perfeito, nos solicitam parcimónia nas fotos. Há mercados de rua de fazer inveja a qualquer grande superfície, mesquitas ao virar de cada esquina, tascas de homens de pele dourada que se perdem num tabuleiro de gamão, chá de maçã e frutos secos. Há romãs, morangos perfumados, framboesas e Portukal, a laranja que é espremida e servida nas bancas de rua. Há carnes suculentas expostas em forma de cone, pão mole insuflado e cheiros intensos a gordura doce, gengibre, cardamomo, canela e pimenta preta.
Galatasaray é onde o peixe se vende com formas de prata e desenhos de platina. Há mosaicos de cores, altares de iguarias que presenteiam os deuses e até os seus inimigos. Existem olhares indiscretos, censuras na língua indecifrável, avenidas longas que alimentam o “Dubai Dream”. Há adolescentes de lenço Kenzo, relógios Armani e ténis All Star. Há livros e lojas de música de perder as horas e os sentidos. Há cisternas com medusas invertidas, túneis e eléctricos que fazem lembrar Lisboa. Aliás, Lisboa é a gémea de Istambul. Se existissem cidades irmãs estas seriam certamente as bastardas nobres da velha Europa. Há engraxadores de sapatos com sorrisos rasgados, vendedores de flores que sorriem para a foto que vai para o país do Cristiano Ronaldo. Há folhados de pistáchio, grão-de-bico cozido com arroz e frango e bancas ambulantes de pão torrado em sésamo e mel.
Istambul é uma cidade gourmet mas é também a uma cidade de desassossegos que apela ao desejo, à luz e à sombra. E por isso, Istambul é uma cidade dourada e maldita, adorada e bendita que reúne sombra e luz numa única perspectiva. É por isso, uma cidade inteira talvez por isso, inquietante e viciante.
As noites são longas e lânguidas entre o chá e o raki... é uma cidade de essências que se respiram e inspiram com sabor a maçã e anis, num cachimbo que borbulha água e perfumes de outras rotas. Há longas horas de conversa e música, e tudo isto até a cidade nos convidar a perder o sono. Há recantos, encantos e os perigos relatados por Ohran Pamuk: a bebedeira dos sentidos e a consciência de os querer perder. Há o encantamento da brisa quente do mar que adorna de véus e perfumes, noites loucas da cidade que adormece em tapeçarias Kilim. Há convites em cada esquina, barcos loucos que atravessam o frenesim das margens, que nos convidam a pisar Ásia e a subir as suas colinas.

E há fado em Istambul, o hüzun, a melancolia turca que se afirma nos crepúsculos de Gálata, que inspirou Pessoa na cidade irmã, escritores e viajantes, vadios e poetas. Sente-se e respira-se uma estranha melancolia. A melancolia da mão que embala o berço... ou não fora Istambul o berço que viu nascer a Europa e a Ásia.
(continua...)

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