01/03/10

Um "Chá no Deserto" com Roberto Bolaño

Aviso ao Leitor: depois de iniciar a leitura de um livro de Roberto Bolaño, difilcilmente conseguirá beber um chá ainda quente!

Ainda era cedo para dormir, nada na televisão anunciava mais do que uma noite aborrecida, e embora evitasse consumir de uma assentada o meu último tesouro, restava-me voltar ao livro, silenciar o CD que rodava há horas, acender a luz fosca ao lado do sofá e ler.
Tinha descoberto um novo amigo, o escritor chileno de que todos falavam: Roberto Bolãno. Fui relutante em comprar "2666". As críticas eram exageradamente entusiastas e tenho a mania de reagir de forma crítica à crítica. Para além disso, os acontecimentos literários do ano tinham montado tamanha parafernália em volta do autor, que decidi esperar por uma altura mais calma (talvez no verão, nas tardes à beira mar) para conhecer este escritor chileno.
Não resisti e acabei por me render a "2666" no início de 2010. Façamos as contas, afinal não fui assim tão tarde à descoberta de um dos melhores autores de sempre.

Depois da lançamento do Terceiro Reich, corri à livraria, tentei disfarçar o desinteresse pelo absurdo preço dos livros neste país, não perdi tempo e sentei-me na esplanada em frente ao jardim. Pedi um chá de menta e folhei o livro. O que tencionava ser a primeira leitura de um único parágrafo, transformou-se na actividade principal da tarde de sábado. Acabei por ficar na esplanada e pedir mais um chá de menta, acabei por o beber frio!
Hoje é noite de Domingo e estou prestes a terminar o livro. Escrevo no intuito o dilatar. Olho para a estante e vejo o nome de Bolaño criteriosamente destacado entre os grandes da literatura mundial.
Ao chegar ao dia 30 de Agosto (11.º Capítulo do Terceiro Reich) começo a sentir uma espécie de nostalgia, aquela que se sente quando se aproximam o fim de umas boas férias, como se cada página fosse o prenúncio de um Setembro prematuro e bucólico. Porque motivo Bolaño não imitou Proust e editou a sua obra em volumes que se vão lendo em busca do tempo perdido?
Entre devaneios, segurando o livro nas mãos, suspirei por novas edições póstumas do autor. Acabei por recordar a Morte em Veneza de Thomas Mann. O que seria de mim se chegasse ao verão sem um novo Bolaño para partilhar as tardes em frente ao mar?
Sorri dos meus devaneios com o conforto dos que sabem ter encontrado um bom amigo. Quando estamos acompanhados de um bom livro, nada mais nos tolda o pensamento, encontramos mais do que um ombro amigo. É como se soubéssemos que temos sempre alguém em casa à nossa espera, alguém e que nos acompanha até à chegada do sono ou na ausência dele.
Naquela noite queimei o resto do incenso de sândalo e cerejeira, desliguei o Cd que rodava há horas, Ali Farka Touré e Toumani Diabaté… que privilégio ter acesso a edições de luxo em pleno mês de Fevereiro!
Com um toque no botão esquerdo do leitor de Cd’s, despedi-me dos bons amigos do deserto e precipitei-me a preparar um chá. Em breve iria retomar a leitura do Terceiro Reich, como se convidasse Bolaño para beber um chá. Sempre que recebo alguém especial, muito acarinhado, preparo um chá. É obrigatório, quase um cerimonial.
Dirigi-me à cozinha, verti água mineral sobre a chaleira e aguardei a cantilena do vapor, anunciando o momento certo para iniciar o ritual das ervas.
O bule era transparente. Lá dentro rodopiavam folhas de erva príncipe e anéis de anis estrelado. Com os cotovelos pousados no mármore frio, olhava o bule como se contemplasse um aquário colorido. Adorava seguir o bailado suado das folhas de chá. Nessa altura, tocou a campainha. Seria a minha? Ninguém me procura à noite, muito menos nas noites de chuva. Por isso continuei a olhar a infusão, coloquei a mão sobre o vapor que saía do bule e, contemplando a palma desenhada por gotas de vapor perfumado, inspirei o aroma das ervas.
A campainha voltou a tocar. Seria provavelmente a vizinha de baixo na insistência do episódio das infiltrações ao qual eu teimava alhear-me.
Quando se assiste aos segredos do chá, quando nos preparamos para mergulhar em Bolaño, não há a mínima disponibilidade mental para infiltrações da vizinhança. Por isso não abri a porta. No sofá, saboreava o chá quente à espera a que a campainha parasse de tocar. Iniciei uma batalha de teimosia e silêncio, pontuada de chá e incenso perfumado.
Peguei no Terceiro Reich- retomei a leitura. Encontrei-me no Hotel Del Mar com Udo, Ingeborg, Hanna e Charly, acompanhei-os até ao fim de Setembro.
Fechei o livro esperando uma próxima e breve edição do autor. Enquanto isso e porque já era tarde, bebi o chá já frio.
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