24/02/10

Rock em R Maior

Faz hoje uma semana que a Fundação Calouste Gulbenkian apresentou um dos melhores concertos de 2010, falamos da Missasokmnis, em réM, op. 123 de Beethoven, sob a regência do britânico John Nelson, com a sublime interpretação do Coro Gulbenkian e Orquestra de Câmara da Europa (OCE).
Escrita entre 1819 e 1823, a Missa Solemnis foi estreada um mês antes da Nona Sinfonia, em 1824. Tratou-se de uma interpretação gigantesca para coro e orquestra repleta da energia e força exclusivas do universo sonoro beethoveniano.
No final do concerto estávamos rendidos, exaustos, esgotados pela energia musical de Beethoven. Durante a peça a OCE parecia possuída, por frenesim de crescendos e dinâmicas dignas das mentes dos génios. Tudo o que aconteceu naquele palco foi apocalíptico! Alguém exclamava no final do concerto: “o Beethoven era gajo para gostar do rock!”
Ainda na passada semana, depois do concerto de Lydia Lunch e Big Sexy Noise na Zdb (Lydia Lunch+Gallon Drunk) alguém exclamou: “foda-se o rock já não é o que era”.
Ontem aquando da audição do último trabalho dos Akron Family dizia um grande amigo (erudito do rock): “tenho lá paciência para um bando de barbudos, armados em agricultores do Minnesota, que fazem umas brincadeiras vocais em palco! Quero é rock e do puro!”
No relato destas três experiências há um denominador comum: o saudosismo de grandes massas musicais, dos estrondos sonoros internos, as saudades das emoções do rock.

Se é verdade que a música se reinventa, o mesmo acontece com os seus arquétipos. Neste caso o velho rock’n’roll, toda a sua estética e estilos de vida associados, parece fazer parte de um passado em constante reinvenção.


A música que hoje se consome (num meio mais “alternativo”) é cada vez mais uma “espécie de rock com referência aos clássicos”. Recuperam-se instrumentos de orquestra, temas e técnicas clássicos, arquitecturas musicais polifónicas, práticas vocais a solo ou a capella, coreografias em palco com orquestras e coros de fundo e até grupos de vozes infantis. Estas “novas” tendências coexistem com a trilogia tradicional do chamado rock mainstream (guitarra, baixo e bateria).
Será este um fenómeno inovador, que veio para ficar ou mais uma corrente efémera?
É certa a tendência para assumir o “back to the basics” mas será este regresso ao formato clássico, compatível com o velho rock?
A geração Myspace, tem importado para o universo musical uma parafernália de estílos, misturas, revivalismos, uma nova estética, conduzindo até ao renascimento de algumas editoras moribundas. Vieram na febre dos podcasts, com a barba por fazer, vestem-se às cores sem obedecer a padrões comuns, são apadrinhados por professores de escolas de música ou monstros sagrados das “editoras independentes”. Saíram dos covis de Brooklyn. Baltimore, Portland, Seattle, vencem na Europa mesmo quando as temperaturas são abaixo de zero, recuperaram descaradamente ritmos africanos, atonalidades orientais e reproduzem-se com(o) os seus loops sonoros.
Esta rapaziada veio importar renovadas coreografias para o cenário musical, novos estigmas, reclamando a herança dos clássicos, instrumentos de orquestras: violinos, harpas, violoncelos e até a velha estante da partitura.

Há uma espécie de regresso à postura tradicional, reforçando a música tonal, expressiva, repetitiva nos módulos melódicos, arreigada por vezes, o conceito canção/lied.
As fórmulas musicais do rock, esquálidas e extasiantes, vão dando lugar a esquemas sensitivos, pontuados e sensoriais, conduzindo a imagens sonoras, fantasistas, produzindo reacções químicas naturais. Hoje consome-se música ao natural, defumada, sem corantes nem conservantes.
Assiste-se ao regresso de técnicas e estéticas vocais com recurso à linguagem do diapasão. Os sons de palco, os rituais do backstage dão lugar à escola do solfejo, a escalas polifónicas, aos ensembles (ditos) alternativos.
Os novos intérpretes trabalham intonemas, dinâmicas e ondulações da voz, trazem “staccatos”, “tenutos”, "diminuendos" e "crescendos" contínuos, criando a intemporalidade dos sons, importando novos vocalismos para o rock.
O sprachgesang de Laurie Anderson, os experimentalíssimos de Diamanda Galás e Meredith Monk, não são descurados, são tomados como padrões para a nova filigrana musical, mas não se assiste a um copy paste vocal. Abandonam-se os monólogos verbais sobre os discursos estereotipados da guitarra. O velho rock rasgava guitarras, distorcia cenários, imprimia sangue e cuspo nas audiências que deliravam em febre e suor, criava coros nas plateias…

Hoje os coros são loops que vêm na mala do interprete e com ele regressam a casa.
Compõe-se para gente sentada, mas também há música que pode ser tocada na rua para gente descalça. Há música que pode ser enfiada num elevador para gente fechada. Há música que desce às caves de um parque de estacionamento levando à letra o conceito underground.

A própria ideia de palco é mais versátil, tão volúvel como os seus seguidores que já cansaram da ronda (f)estivalesca e preferem correr a avenida de liberdade de cevada na mão. O rock stadium deu lugar ao rock steady num cenário mais urbano longe das periferias e das garagens suburbanas.

Há palcos novos: nos coretos das cidades, nas praças e jardins, em salas de cinema e de teatro recuperadas, dentro de táxis e lojas tradicionais de bairros típicos ou monumentos esquecidos. O rigor acústico não preside à escolha dos novos palcos procuram-se sim novos espaços para sonoridades atípicas: é a música que cada vez menos se faz em palco e, cada vez mais, se produz para um palco.

Certas tessituras vocais da chamada cold wave passaram a ser referências estéticas quase obrigatórias. Os novos sons vêm da quase-escola David Sylvian, David Byrne têm como mestres Robert Wyatt; Neil Young, Brian Eno e, convenhamos, alguns dos novos discípulos são exemplares.
Há ainda o legado do Kraut Rock (Tangerine Dream, Kraftwerk, Neu, Can) que hoje é muitas vezes reinventado em ritmos contínuos, hipnóticos capazes de ressuscitar bandas moribundas que voltam a emergir das cinzas: Pavement; My Bloody Valentine, Swans.
Assiste-se, ao mesmo tempo, ao emergir dos fenómenos Gang Gang Dance, Thelepate, Beach House, High Places, AU; Dirty Projectors a recordar as coqueluches da dream pop.
Mas onde está o vibrato do rock, o grito, o timbre gutural demoníaco (Diamanda Galás, Blixa Bargled, Mike Patton)? Onde paira a assumida falta de ar dos Stones, a irreverência dos Stooges, os maneirismos (falseto) vocais de Morrisey? A poesia declamada de Nick Cave e Patti Smith? As vozes distorcidas pelos instrumentos (Einsturzende Neubauten; Young Gods, Sonic Youth), as texturas corais artificiais de Brian Eno, os devaneios camaleónicos de David Bowie, as vozes bêbadas de Tom Waits e Shane MacGowan?

Viveremos a Era da laringe limpa, sem ruídos e atritos?
Com efeito, a dependência do microfone dá lugar aos loops vocais e o antigo conceito de “banda” está a ser engolido por caixinhas de música portáteis.
Mas o “Rock’s not dead” ou como cantava Neil Young “Rock ‘n’roll will never die”! Nos últimos anos têm aparecido formas revivalistas do rock psicadélico/sinfónico: veja-se o caso dos Black Mountais, Black Keys, os Elbow, o fenómeno púrpura de Gogol Bordello, The Obits...

Se é certo que a música se reinventa apesar da moda das vozes limpinhas e afinadas, assiste-se infelizmente a uma morte anunciada: a morte prematura da poesia eclética, fonética, o abandono da declamação concreta (Laurie Anderson, Anne Clark). Não fora Patti Smith ou Nick Cave (e as reinvenções Grinderman, Big Sexy Noise) poderia falar-se do fim da noisy poetry.

Para além dos colectivos musicais (ao estilo de pequenas orquestra de câmara) coexistem ainda dois fenómenos quase-revivalistas: a recuperação dos songwriters e o conceito de One Man Orchestra.
Os cançonetistas/"cantautores" de hoje são rapazes bem formados que seguem a linhagem de Leonard Cohen, Serge Gainsbourg ou Paulo Comte.
Biolay e Beaupin assinam a recuperação do tema francês, Patrick Wolf, Andrew Bird e J. Lekman assumem-se como os novos autores das traquinices vocais. Há a sobriedade de M. P Hinson, Bill Callahan, Scott Mathews e Bon Iver. D. Banhart assume-se como o novo L’enfant terrible. De tirar o chapéu a Steve Jansen, ao singular Tom Yorke e ao estranho -mas maravilhoso - caso de Antony Hegarty.
Aparecem também os poli-instrumentistas. São os sucessores de Robert Wyatt, Steven Brown, Hector Zazou, Harold Budd, herdeiros de Glass, Nymam, Sakamoto e Bryars, assiste-se ao regresso dos meninos prodígio como é o caso o apadrinhado Nico Muhli.
Estará a teia sonora do rock - assente no diálogo da guitarra e do baixo, na massa acústica de ritmos sincopados e beats fenomenais- a dar lugar ao individualismo de palco, ao one man band?

Na cena rock deste princípio de século revelam-se virtuosos os doutores do soundsystem. O DJ é muito mais do que um animador, é o herdeiro da técnica sractch inaugurada por Cage. Mestre na manipulação do vinil e do discurso directo, a proliferação da figura do Disco Jockey deu lugar ao hip hop, ao rap, a momentos tão singulares como as sessões dos bestiais Beastie Boys, ao discurso rítmico contagiante dos Why?. Mas um homem, uma guitarra, uma arrojada predisposição das cordas vocais, uma série de loops, outras técnicas multimédia conseguem criar fenómenos sinfgulares na músic de hoje. Veja-se um dos exemplos de álbum da década, Person Pitch de Noah Lennox.
Assiste-se ao triunfo dos solistas de sintetizadores, da parafernália electrónica, mestres de loops, sequências poliritmicas e tímbricas, mas onde estão os solistas de instrumentos? Serão os novos autores capazes de fazer sentir os sons arrojados de Jonh Lurie ou Jonh Zorn, dos virtuosos Bill Laswell ou Fred Frith? Quem não sente um arrepio ao escutar Elliot Sharp, Dana Colly dos Morphine, a guitarra de Johnny Marr, o conceito rítmico de Anton Fier?

Nas vozes femininas, não se estará a abusar da imagem da menina bonita, saída da lenda do Peter Pan, cantoras e tocadoras de harpa, cabelos de fada e pés descalços? Quase todas as vozes a solo situam-se num registo delicodoce, entre o Bel Canto e o Bel espanto, como se negassem a o legado de J. Joplin, Patty Smith, Laurie Anderson, Lydia Lunch. Good Girls Go To Heaven, Bad Girls Go Everywhere: felizmente existem ainda meninas más que na música vão a todo o lado e nos levam com elas ...

Será Zola Jesus a reinvenção de Siouxie (digam lá se este "Clay Bodies" não tresanda a Jesus&the Mary Chain)? É difícil ficar indeferente a Liz Harris (Grouper), Eva Saelens, Ramona Gonzalez, Megan Remy (U.S. Girls), até mesmo Christina Courtin consegue fugir aos traços da menina bem comportada. Neko Case, Fever Ray (aka Karen Anderson), Holly Miranda, são algumas das aparições a solo. Mas há mais: Girls, Vivian Girls e outras veteranas continuam a dar a voz ao manifesto em albuns completamente arrebatadores, é o caso de Beth Gibbons (em Third:2008), da sempre intemporal Lisa Germano, e a reciclável Björk que tem vindo a associar-se a nomes tão distintos como Toumani Diabaté e Arvo Pärt.

Com tanta gente nova e referência aos clássicos é caso para dizer que o Rock voltou à "escala" seja em Do, seja em Lá ou numa espécie de Re_mi's_takes: cada um tem o professor que merece!

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Persona: Um blogue, ou coisa que o valha, assinado por SA que um dia se chateou com o anonimato e decidiu testar o poder das siglas.
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