Já nas bancas a edição 226 da Revista Audio e Cinema em Casa!
O destaque vai para o suplemento HD@AUDIO onde se podem ler os seguintes textos da autoria cá da casa:
Filme do Desassossego, de João Botelho
Dorian Gray, de Oliver Parker
24 City, de Jia Zhang-Ke
Vencer, de Marcho Bellochio
Orlando, de Sally Potter
O destaque vai para o suplemento HD@AUDIO onde se podem ler os seguintes textos da autoria cá da casa:
Filme do Desassossego, de João Botelho
Dorian Gray, de Oliver Parker
24 City, de Jia Zhang-Ke
Vencer, de Marcho Bellochio
Orlando, de Sally Potter
Como amostra fica a nossa homenagem a Alain Resnais:
"Desenhos cegos são aqueles que resultam de se olhar o tempo inteiro para o objecto em reprodução e nunca para o papel. Ervas Daninhas de Alain Resnais é um desenho cego onde o realizador nos convida a esquecer o conteúdo previsível da folha branca e nos leva a traçar rabiscos no papel, ao sabor do acaso.
No princípio do filme Resnais dá-nos o tópico para esta viagem de esquissos. Convida-nos a ser autores do argumento, dá-nos um papel em branco, um lápis tosco, acende um cigarro e diz-nos que naquela sala não é permitido fumar.
Percebemos que acabámos de entrar num laboratório onde se fabricam exercícios de cinema. O realizador começa o jogo, convida-nos a escolher os nossos lugares e lança-nos os dados logo nos primeiros minutos de filme.
O mestre de nome Alain Renais dá inicia aos primeiros trinta minutos do filme para nos apresentar a expetativa de um enredo comum. Assim dá-nos a conhecer uma das personagens, Marguerite Muir (Sabine Azéma), uma mulher requintada que vai comprar sapatos e é assaltada na saída da loja. Segue-se então o segundo tópico, Georges Palet (André Dussollier), a outra personagem. Palet encontra a carteira da enigmática Marguerite e procura encontrar esta mulher a todo o custo, como se a conhecesse desde sempre, para dar continuidade a uma história que nunca terá sido concretizada.
O realizador é generoso e vai-nos oferecendo, gradualmente, o desenho das personagens. Como se nos dissesse: “primeiro vamos desenhar Marguerite”. E assim surge a bizarra personagem: primeiro os seus pés, depois filma-a de costas e mais tarde vemos o seu rosto enquanto toma banho, ainda com a desalinhada cabeleira de fogo escondida dentro de água. Só depois nos é dado a conhecer esta mulher cujos cabelos poderiam ter sido desenhados por uma criança de seis anos e cuja indomentária nos faz lembrar a versão adulta e feminina do Principezinho de Saint-Exupéry. O mesmo vai acontecendo com Palet só que ao invés da personagem feminina, Palet vai-se revelando pela sua (a)moralidade, passando de um simpático senhor cinquenta anos, de olhar claro, um ar sofrido (veja-se a descrição do polícia), para um frustrado cinquentão, de mal com a vida, tomado por um negrume que o deixa irado, quase verde, numa súbita e inexplicável violência que poderá ser a ponta do véu que o revela na sua essência: um psicótico, frustrado e deprimido. A vida é um ensaio diz Resnais e ninguém está livre do perigo das ilusões que cria ao entrar no jogo do desenho cego.
Para este jogo o realizador adianta-nos ainda outros ingredientes iniciais: uma trama dramática aparentemente vocacionada para um romance, duas personagens e uma folha em branco onde nos espera um lápis de ponta afiada. Mas ao primeiro traço no papel, quando nos propomos a seguir uma ilustração aparentemente simples, segue-se uma desordem propositada.
Continuamos a seguir um traço à medida que a desordem se aglomera em dados novos que vamos descobrindo nas personagens em reprodução. Incautos não nos apercebemos que na folha branca vão crescendo desenhos, rabiscos daninhos, uma teia de incidentes, coincidências e dúvidas que traduzem a nossa ideia de relação social. Ervas Daninhas é exactamente isto, um desenho cego sobre relações sociais, ou visto à lupa, a história de um amor louco que, tal como uma erva daninha, nasce e cresce no local e no momento errado.
Ao longo do filme o realizador vai-nos dando pistas para o desenho que criamos. A páginas tantas, como se fintássemos as regras do jogo, espreitamos de vez em quando a folha em branco. Nestes relances o realizador expõe uma série de imagens de ervas daninhas que crescem no asfalto e à medida que o enredo se desenha, no final da nossa ilustração, há um campo cheio destas ervas ruins!
E vamos percebendo que desenhar relações sociais pode ser o princípio de uma história de violência, há que ser cauteloso, pois se teimarmos em seguir a lógica do desenho cego –insistindo em não olhar para o papel (o papel do outro e para o papel social de cada um)- as ervas daninhas vão crescendo no seio das relações sociais. Tudo é um risco, ou um conjunto de riscos que corremos e desenhamos. Afinal (e no final) o filme (e ao mesmo tempo o nosso desenho) pode ficar tão desgrenhado como o cabelo ruivo de Marguerite Muir ou tão violento como o insano Palet.
Ervas Daninhas de Alain Resnais não é um filme fácil, mas é absolutamente genial. Se decidirmos correr este risco, se entrarmos nesta aventura, se desenharmos piruetas nos céus da nossa própria cegueira pode ser que acabemos destroçados num avião, algures entre um campo cheio de flores e, como num sonho, encontramos um principezinho de cabelos ruivos que nos pede para desenhar um chapéu!
Genial como ele próprio, Resnais!"
No princípio do filme Resnais dá-nos o tópico para esta viagem de esquissos. Convida-nos a ser autores do argumento, dá-nos um papel em branco, um lápis tosco, acende um cigarro e diz-nos que naquela sala não é permitido fumar.
Percebemos que acabámos de entrar num laboratório onde se fabricam exercícios de cinema. O realizador começa o jogo, convida-nos a escolher os nossos lugares e lança-nos os dados logo nos primeiros minutos de filme.
O mestre de nome Alain Renais dá inicia aos primeiros trinta minutos do filme para nos apresentar a expetativa de um enredo comum. Assim dá-nos a conhecer uma das personagens, Marguerite Muir (Sabine Azéma), uma mulher requintada que vai comprar sapatos e é assaltada na saída da loja. Segue-se então o segundo tópico, Georges Palet (André Dussollier), a outra personagem. Palet encontra a carteira da enigmática Marguerite e procura encontrar esta mulher a todo o custo, como se a conhecesse desde sempre, para dar continuidade a uma história que nunca terá sido concretizada.
O realizador é generoso e vai-nos oferecendo, gradualmente, o desenho das personagens. Como se nos dissesse: “primeiro vamos desenhar Marguerite”. E assim surge a bizarra personagem: primeiro os seus pés, depois filma-a de costas e mais tarde vemos o seu rosto enquanto toma banho, ainda com a desalinhada cabeleira de fogo escondida dentro de água. Só depois nos é dado a conhecer esta mulher cujos cabelos poderiam ter sido desenhados por uma criança de seis anos e cuja indomentária nos faz lembrar a versão adulta e feminina do Principezinho de Saint-Exupéry. O mesmo vai acontecendo com Palet só que ao invés da personagem feminina, Palet vai-se revelando pela sua (a)moralidade, passando de um simpático senhor cinquenta anos, de olhar claro, um ar sofrido (veja-se a descrição do polícia), para um frustrado cinquentão, de mal com a vida, tomado por um negrume que o deixa irado, quase verde, numa súbita e inexplicável violência que poderá ser a ponta do véu que o revela na sua essência: um psicótico, frustrado e deprimido. A vida é um ensaio diz Resnais e ninguém está livre do perigo das ilusões que cria ao entrar no jogo do desenho cego.
Para este jogo o realizador adianta-nos ainda outros ingredientes iniciais: uma trama dramática aparentemente vocacionada para um romance, duas personagens e uma folha em branco onde nos espera um lápis de ponta afiada. Mas ao primeiro traço no papel, quando nos propomos a seguir uma ilustração aparentemente simples, segue-se uma desordem propositada.
Continuamos a seguir um traço à medida que a desordem se aglomera em dados novos que vamos descobrindo nas personagens em reprodução. Incautos não nos apercebemos que na folha branca vão crescendo desenhos, rabiscos daninhos, uma teia de incidentes, coincidências e dúvidas que traduzem a nossa ideia de relação social. Ervas Daninhas é exactamente isto, um desenho cego sobre relações sociais, ou visto à lupa, a história de um amor louco que, tal como uma erva daninha, nasce e cresce no local e no momento errado.
Ao longo do filme o realizador vai-nos dando pistas para o desenho que criamos. A páginas tantas, como se fintássemos as regras do jogo, espreitamos de vez em quando a folha em branco. Nestes relances o realizador expõe uma série de imagens de ervas daninhas que crescem no asfalto e à medida que o enredo se desenha, no final da nossa ilustração, há um campo cheio destas ervas ruins!
E vamos percebendo que desenhar relações sociais pode ser o princípio de uma história de violência, há que ser cauteloso, pois se teimarmos em seguir a lógica do desenho cego –insistindo em não olhar para o papel (o papel do outro e para o papel social de cada um)- as ervas daninhas vão crescendo no seio das relações sociais. Tudo é um risco, ou um conjunto de riscos que corremos e desenhamos. Afinal (e no final) o filme (e ao mesmo tempo o nosso desenho) pode ficar tão desgrenhado como o cabelo ruivo de Marguerite Muir ou tão violento como o insano Palet.
Ervas Daninhas de Alain Resnais não é um filme fácil, mas é absolutamente genial. Se decidirmos correr este risco, se entrarmos nesta aventura, se desenharmos piruetas nos céus da nossa própria cegueira pode ser que acabemos destroçados num avião, algures entre um campo cheio de flores e, como num sonho, encontramos um principezinho de cabelos ruivos que nos pede para desenhar um chapéu!
Genial como ele próprio, Resnais!"
Texto de SA publicado na edição 226 da Revista Audio Cinema em Casa