"Em Antígua a segunda cidade dos conquistadores, de horizonte límpido e velha veste colonial, o espírito religioso entristece a paisagem. Nesta cidade de igrejas sente-se uma grande necessidade de pecar. Alguma porta se abre dando passagem ao senhor bispo, seguido o senhor alcaide. Fala-se a meia voz. Vê-se de pálpebras descidas. A visão da vida através dos olhos entreabertos é clássica nas cidades conventuais. Ruas de hortas. Arcadas. Pátios solarengos onde se afanam as fontes claras. Timbre grave dos sinos. Oxalá se coserve esta cidade antiga sob a cruz católica e a guarda fiel dos seus vulcões! Logo, festas reais celebradas em geniais dias e festivais solenidades. As senhoras em cadeiras de altos espaldares, deixam-se saudar por cavaleiros de bigode petulante e ataviados de negro e prata. Esta junta ao pé breve o olhar lânguido. Aquela tem os cabelos de seda. Um perfume desmaia a respiração da que conversa agora com o senhor da Audiência. A noite penetra… penetra… O bispo retira-se, seguido dos bedéis. O tesoureiro, gentil homem e cavaleiro da ordem de montesa, narra a história das linhagens. Dos castiçais de vidro cai a luz das velas entumecida e eclesiástica. A música é suave e fervente, e a dança triste a compasso de três por quatro. A intervalos ouve-se a voz do tesoureiro, que comenta o tratamento de «Muy ilustre Senhor» concedido ao Conde de la Gomera, o capitão general do reino, e o eco dos relógios velhos que contam o tempo sem se enganar. A noite penetra… penetra… O cuco dos sonhos vai teclando os contos.
Estamos no templo de S. Francisco. O olhar alcança a grade que fecha o altarda Virgem de Loreto, os pavimentos de azulejos de Génova, as colgaduras de Damasco, os tafetás de Granada e os terciopelos carmesim e de brocado! Aqui apodreceram mais de três bispos e as ratas atraem maus pensamentos. Pelas altas janelas entra furtivamente o ouro da Lua. Meia Luz. As velas sem chamas e a Virgem sem olhos na sombra.
Uma mulher chora diante da Virgem. O seu soluçar num fio, vai cortando o silêncio.
O irmão Pedro Betancourt vem orar depois da meia-noite: deu pão aos famintos, asilo aos órfãos e alívio aos enfermos. O seu passo é inaudível, anda como voa uma pomba.
Imperceptivelmente aproxima-se da mulher que chora, pergunta-lhe que penas a afligem, sem reparar em que é a sombra de uma mulher inconsolável, e ouve-a dizer:
- Choro porque perdi um homeme que amava muito: não era meu esposo, mas amava-o muito!... perdão, irmão, isto é pecado! O religioso levantou os olhos em busca da Virgem, e … que extraordinário!, tinha crescido e estava mais forte. De repente sentiu cair-lhe sobre os ombros a capa aventureira, a espada cingida à cintura, a bota à perna, a espora ao calcanhar e a pluma no chapéu. E compreendendo tudo, porque era santo, sem dizer palavra inclinou-se ante a dama que estava a chorar… "
Miguel Angel Asturias, Lendas da Guatemala, "Guatemala", Publicações D. Quixote, 1967, pag.16-15
Fotos: Persona, dos albúns"Antígua, Guatemala, Setembro 2009" e " Quetzalcastenango, Guatemala, 2009"